“VOCÊS SÃO IGUAIS SABEM A QUEM?” - Meu nome é Johni

Meu nome é Johni
MENU
“VOCÊS SÃO IGUAIS SABEM A QUEM?”

“VOCÊS SÃO IGUAIS SABEM A QUEM?”

Ao sentar para escrever esse texto, uma cena me vem à cabeça. Em 13 de setembro de 1968, no palco do Festival Internacional da Canção, diante de um público hostil, Caetano Veloso fez, de improviso, um discurso antológico. Ao mirar os olhos de uma juventude esteticamente reacionária, incapaz de articular a força libertária que emanava daquela apresentação de É proibido proibir, o artista baiano colocou o dedo na ferida e apontou: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? […] Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram no Roda Viva e espancaram os atores”. Caetano e eu estamos separados por quase 53 anos e as razões pelas quais acionamos esse desabafo são bastante dessemelhantes, mas, ao sentar para escrever esse texto, a pergunta “mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder” não deixa de ecoar em minha cabeça.

            Nunca fui assíduo telespectador do Big Brother Brasil. Não por qualquer implicância com o formato ou a sua proposta – sinceramente, acho enfadonhos discursos que tomam do programa como espaço promotor de alienação. Tenho, sim, certas reservas éticas em relação à exploração de dramas particulares ou das tensões sócio/étnico/culturais como uma forma de entretenimento, mas isso não se aplica apenas ao BBB, podendo ser estendido a outros formatos – inclusive, o jornalismo. A razão de eu não acompanhar a esse reality show, ou a qualquer outro, se deve simplesmente ao fato de não ter muita paciência para a televisão: gosto de pouca coisa, um ou outro jogo; uma ou outra novela. Ainda assim, lembro de ter prestado alguma atenção à primeira edição do programa, no já longínquo ano de 2002, sobretudo pelo fato de ele ter sido alardeado como um grande laboratório, uma espécie de experiência sociológica – e, talvez, em uma dimensão algo perversa, o seja mesmo. Lembro de meu assombro diante de uma circunvizinhança em delírio e gritaria, como se o seu time houvesse ganho algum campeonato importante, com o resultado da vitória de Kléber Bambam, que havia, ao acionar em cena as suas fragilidades, angariado a simpatia do telespectador, agora dotado da possibilidade de influenciar no resultado do jogo.

            Anos depois, mais precisamente em 2005, eu pude sentir alguma esperança no Brasil com a vitória de Jean Wyllys no BBB 5. Naquele ano, em que tudo parecia tender ao melhor, o público havia rejeitado a perseguição sistemática e homofóbica capitaneada por Rogério Padovan, o Doutor Gê, ao grupo constituído em torno de Jean. Era algo imprevisto para um país estruturalmente organizado para violentar e eliminar – quando não pela morte física, através da imposição do silêncio, ou seja, pela negação do direito ao exercício livre da existência. Por um instante, era possível pensar que abandonávamos, finalmente, a barbárie que, ao longo de mais de 500 anos, tem nos constituído como nação. Foi uma alegria vê-lo ganhar.

            Porém, com o tempo, aquele se mostrou como um instante raro. Nas outras edições, vencedores como Marcelo Dourado (BBB 10) e Paula von Sperling (BBB 19), que promoveram, mais de uma vez durante o jogo, agendas controversas, atravessadas por preconceitos estruturais vários,confirmaram aquilo que, um dia, o grande Tom Jobim asseverou: o Brasil não é para principiantes. Era a representação perfeita de um cenário político ao avesso do de 2005, agora marcado pela interação em rede do ódio nosso de cada dia, antes relegado a pequenas bolhas distantes umas das outras.

(Não estou, com isso, afirmando que a violência e a intolerância a que assistimos, pasmos, grassarem em cada esquina são produtos da internet ou, mais precisamente, das redes sociais. Pensar desse modo parece-me rasteiro, além de ser um artifício para salvaguardar os nossos corpos enquanto lugares de virtudes maculadas: o problema nunca estaria em nós, mas em algo que age sobre nós, alterando-nos ou manipulando-nos. Ao contrário: o Brasil é um país fundado na e pela violência. E nós, enquanto brasileiros, somos partícipes dessa violência. O ódio ao outro, àquele não alinhado às normatizações promovidas pela matriz colonizadora ocidental, têm matado e mata diariamente, seja através da bala do Estado, da “piada” do humorista ou de nossas insuspeitas palavras – e silêncios e risos – do dia-a-dia. É indiscutível, no entanto, a potencialização do ódio que ferramentas como as redes sociais e os algoritmos responsáveis pela automatização do trânsito de informações na web promovem. Isto por duas razões: a aproximação em rede de pessoas ou grupos já seduzidos pela naturalização de posicionamentos preconceituosos, como se dotados de alguma verdade, e a disseminação em massa de fakenews ou teorias conspiracionistas – estas, estruturadas em torno de um sentido de missão em salvar ou libertar um mundo doutrinado pelo erro, são particularmente sensíveis aos mais jovens, os quais, pelos próprio dilemas da idade, que envolvem desde as tensões familiares até a necessidade de uma autoafirmação, tornam-se bastante susceptíveis.)

Lembro de ter comentado à época da vitória de Paula von Sperling que o fato de ela ter sido abraçada pelo público não causava qualquer espanto. Tratava-se do mesmo Brasil que, poucos meses antes, havia eleito Jair Messias Bolsonaro à presidência. Era, portanto, de certo modo uma correlação fácil de ser estabelecida: havia uma correspondência orgânica entre a eleição presidencial e o voto de internautas e telespectadores na menina loira, de família abastada, sobrenome de origem alemã, posicionamentos tradicionais e discursos não assumidamente racistas e intolerantes, embora o fossem.

 Com a chegada do verão de 2020, mais uma nova edição do BBB foi ao ar. Dessa vez, a movimentação do público assumiu um matiz progressista, elegendo Thelma Assis, mulher negra, como vencedora. Não foi a primeira vez, é verdade: basta lembrar os casos de Gecilda da Silva dos Santos, a Cida do BBB 4, ou Gleici Damasceno, do BBB 18. Entretanto, não custa apontar que, mesmo este não sendo um fato inédito, ele pode ser visto como raro: poucas mulheres negras foram vencedoras. Ademais, a vitória de Thelma foi bastante simbólica, justamente por ter acontecido na edição seguinte àquela em que Paula sagrou-se campeã.

(Aqui cabe uma observação. Talvez tenham os mais atentos percebido o fato de que a vitória de Paula von Sperling se deu entre a coroação de duas mulheres negras, Gleici Damasceno e Thelma Assis – o que sugere um movimento pendular do público, transitando entre escolhas com reflexos mais progressistas ou conservadores. As edições de 2019, por ser logo posterior ao processo eleitoral de 2018 e ainda se alimentar das tensões e dos radicalismo decorridos dele, e de 2020, por meio que produzir uma resposta ao resultado de um ano antes, parecem-me bastante emblemáticas, mais do que aquela em que Gleici ganhou o voto popular.)

Lembro de não ter sequer acompanhado as notícias da edição 2020 do BBB, mas de ter ficado alegre com o resultado, com alguma sensação de justiça em relação ao ano anterior, e de algumas alunas e alguns alunos compartilharem comigo, em sala, o fato de se sentirem também alegres com o fato de uma mulher negra ter vencido. Evidentemente, mais do que identificações étnico-raciais, tais posicionamentos implicavam posturas políticas. E é bonito ver aquelas pessoas sendo revigoradas em sua força, potencializando seus corpos para a luta antirracista.

Quando vi as primeiras notícias acerca do BBB 21, que se apresentava como a edição mais racialmente equânime, confesso ter me interessado. Estaríamos, como de fato estamos, diante de algo muito raro na televisão brasileira: um programa em que os corpos negros não seriam reduzidos à minoria numérica. Mesmo eu não sendo da área de exatas, sei, de um saber sem dúvidas, que números importam. A novidade, porém, não se restringia ao aspecto quantitativo: o BBB procurava assumir uma agenda progressista – não sei se realmente por adesão ideológica ou, o que me parece muito mais provável, como tensionamento do campo discursivo que alimenta o universo bolsonarista, que se coloca como inimigo ou, pelo menos, como entrave à hegemonia da Rede Globo. Entre os participantes, foram selecionadas pessoas que, tanto no campo profissional quanto na comunicação via redes sociais, assumem um tom político, militante, ativista, libertário. Pessoas que pautam discussões urgentes e assumem um compromisso com a conscientização e a mudança. Pessoas que pleiteiam um outro país. Pessoas necessárias.

No entanto, o que temos visto ao longo dessas últimas semanas, mais do que desapontado, tem sangrado. O que temos visto é o mecanismo cruel através do qual a opressão se perpetua: o corpo oprimido que deseja oprimir; o corpo violentado, preso a uma cadeia de dor naturalizada de modo tal que a reproduz, sem dúvida inconscientemente, igualando-se em ato ao modelo opressor ao qual foi (e ainda está) submetido.

O que temos visto é a violência posta em cena por quem esperávamos vê-la combatida. Isso sangra, porque daqueles que nos matam diariamente, nós já sabemos não haver carinho no movimento da mão, mas apenas o tapa, apenas a pancada. Não esperamos o seu afago. Outra, porém, é nossa atitude em relação àqueles de quem nos sentimos existencialmente ou ideologicamente próximos. O sentimento é outro.

Não se tratava de nenhuma expectativa idealizada, não. Há muito tempo eu sei que as periferias também produzem as suas periferias e que todo discurso que veicula uma imagem edulcorada e totalizante de fraternidade (ou sororidade) entre oprimidos, como se cada indivíduo se reconhecesse automaticamente no outro por seu fenótipo, suas identidades sexuais ou de gênero, ou sua inserção em uma classe social, ou é ingênuo, baldo de uma leitura mais densa dos conflitos humanos, ou construção de imagens para gerar votos ouposts e engajamento no instagram. Tratava-se, isso sim, de uma expectativa em torno da força política da presença daqueles corpos, como se neles eu apostasse o possível de uma saída do ciclo interminável de violências em que estamos presos.

No entanto, temos visto o oposto. O massacre ao qual foi submetido o garoto negro e bissexual Lucas Penteado (e na expressão “garoto” por favor não se leia nenhuma condescendência em relação aos seus erros na casa, apenas uma alusão à sua idade), constantemente violado, deslegitimado e rebaixado por KarolConcá, Lumena, Projota e Nego Di é a exposição absurda do facho de trevas, para usar uma expressão do filósofo italiano Giorgio Agamben, desse nosso contemporâneo.

Facho de trevas por duas razões: 1. resta uma sensação de derrota, como se a máquina tivesse vencido, quando aqueles em que se aposta a possibilidade de uma abertura desviante se mostram, na verdade, reprodutores disciplinados da mesma e velha lógica; e 2. o que temos visto coloca em tensão parte significativa dos encaminhamentos políticos do campo progressista, cujo radicalismo de certos posicionamentos, ditos, não sem violência, lacradores, parecem chegar a um ponto de esgotamento, no qual mais se assemelham àquilo que juram combater.Nesse cenário, quem faz a festa e ri às largas é o reacionarismo hegemônico.

É claro que é absurdamente precipitado elaborar qualquer julgamento definitivo sobre as pessoas supracitadas. Não se trata de cancelá-las, o que vem a ser uma atitude autoritária e castradora do contraditório – e que implicaria repetir comportamentos que elas próprias estão colocando em cena na casa. Assim como é igualmente um absurdo assediar ou ameaçar familiares, convocá-los a tomarem uma posição, submetendo-os à mesma lógica de violência à qual nós, indignados com o que estamos vendo, pensamos combater (talvez eles estejam tão chocados e desapontados quanto nós, com a diferença de, no caso deles, este ser um estilhaçamento ainda mais brutal. o silêncio deve sempre permanecer como um direito em casos assim). Trata-se apenas de colocar em questão.Estamos todos em face da necessidade de refletir, de pensar ou repensar. Sobretudo nós, pessoas irmanadas ao campo progressista. Sobretudo nós. Precisamos ser agentes de instauração de possíveis libertários, não de terrenos onde apenas se cultivam adoecimentos.

E, enquanto procuro começar a dar conta desse imperativo aqui, nesse texto, não me sai da cabeça aquele desabafo de Caetano… ou aquela canção do Belchior: minha dor é perceber/ que apesar de termos feito/ tudo, tudo o que fizemos/ ainda somos os mesmos/ e vivemos/ ainda somos os mesmos/ e vivemos/ como nossos pais.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem:  reprodução internet

10/02/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

O que você achou? Deixe seu Comentário