UM MÊS PARA NÃO ESQUECER - Meu nome é Johni

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UM MÊS PARA NÃO ESQUECER

UM MÊS PARA NÃO ESQUECER

30 de março de 2020. Penúltimo dia do mês. Embora a data geralmente ocasione o sentimento de despedida – de mais um mês, do primeiro trimestre –, fico com a sensação de que março, este último mês de março, se estenderá a abril e maio, talvez a junho e julho. E esta sensação é a de um gosto amargo na boca; é a de uma apreensão dentro do peito; é a de uma incredulidade nos olhos e ouvidos. É a de um espanto que se escapa pela voz rasteira, frágil: “meu deus…”
Da janela de onde eu moro, décimo oitavo andar de um prédio no Largo Dois de Julho, ouço e vejo a vida em risco passando pela rua, a despeito de um carro de som solicitar a todxs que cumpram o isolamento social preventivo contra o covid-19. Do sofá ou de minha mesa de trabalho, lugares a partir dos quais procuro acompanhar o ritmodas notícias, vejo e ouço bravatas típicas da ignorância média do povo brasileiro, cujo acesso à educação de qualidade é bloqueado pelo elitismode uma política longa e nefasta de escamoteamento de escolas e de universidades públicas – o que gera uma recusa ao pensamento crítico e um negacionismo do discurso científico, solo fértil para o desenvolvimento de teorias da conspiração, disseminadas como verdades em redes sociais, e para a aderência em massa a perspectivas (intelectualmente simplórias) de redução simplista da complexidade dos fenômenos sociais. É o que tem especialmente feito (eu diria, é o que sempre fez) o atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro – espelho perfeito do que a sociedade brasileira tem de pior: o orgulho raivoso de ser ignorante; a piada sem graça e ofensiva sempre pronta para a pior hora, a violência bruta no confronto com o que não é o si mesmo e a absoluta incapacidade para o diálogo.
Talvez estejamos vivendo, nesta exata hora, o pior momento da história recente do Brasil – por “recente”, compreendo séculos XX e XXI. Faço esta consideração mesmo tendo em mente os momentos dramáticos pelos quais passamos ao longo das duas ditaduras, a Vargas e a militar, que nos marcaram e marcam de vergonha, cicatriz, pus e luto – e eu que sou de família de perseguidxs, torturados e desaparecidos políticos, leia-se assassinados pelo Estado, nunca pensei viver algo que fosse capaz de produzir em mim essa sensação. Mesmo naquelas épocas tão duras, quando a dor e a morte eram operadas pelo Estado em porões escuros, anos sombrios que não raro recebem o elogio público promovido por Jair Messias Bolsonaro, não há notícia de um governante que tivesse tão pouca estima pela vida dxsbrasileirxs a ponto de convocá-lxs à possibilidade nada pequena do adoecimento e da morte.
Sim, trocando em miúdos, é disto que se trata a insistência bolsonarista no retorno à normalidade: uma convocação à possibilidade nada pequena do adoecimento e da morte. Na contramão do movimento global em torno à quarentena horizontal como única forma de contenção da velocidade com que o covid-19 se espalha e faz vítimas, prática adotada inclusive nos Estados Unidos de Donald Trump, e do próprio Ministério da Saúde comandado por Luiz Henrique Mandetta, que tem trabalhado corretamente em função de dados e de orientações técnicas ao invés de piadinhas, fakenews e provocações políticas infantis, Bolsonaro reduz a ameaça real que o coronavírus representa – basta verificar a situação por que passam Itália, Espanha e Estados Unidos – a uma “gripezinha” ou a um “resfriadinho” e insiste para que se volte normalmente ao trabalho, às escolas e às faculdades. Para ele, apenas xsidosxs e as pessoas com problemas crônicos de saúde deveriam ser mantidxs em quarentena – perspectiva esta totalmente descolada da realidade brasileira, na qual muitas famílias vivem amontoadas em casas mínimas, às vezes de um ou dois cômodos. Não à toa, especialistas têm alertado para um possível cenário catastrófico quando o vírus se instalar definitivamente nas favelas brasileiras. Confrontado a este fato, o presidente apenas afirmou: “o brasileiro tem de aprender a cuidar de si próprio”. Ou seja, o caso não é apenas de incompetência, mas de descaso e mau-caratismo.
(Fala-se em preservar a economia de uma recessão profunda que virá. Não desconheço que enfrentaremos um grave empobrecimento de uma população já pobre ou ondas de desemprego – aliás, grandes empresários Brasil afora fazem questão de nos lembrar e de nos ameaçar com esta perspectiva. Mas, eu pergunto: como se faz isso sacrificando vidas? Quantas famílias enfrentarão um processo terrível de esfacelamento porque quem as matinha contraiu o vírus e faleceu? Se tivermos um número de infecções e de mortes próximo àquele que as projeções mais duras apontam como possível a médio e longo prazo, não teremos uma situação ainda mais grave com a qual lidar? No cálculo frio dos economistas de Bolsonaro, quanto vale uma vida, afinal?)
Infelizmente, a pandemia de covid-19 não se reduz a uma “gripezinha” ou a um “resfriadinho”. Basta acompanhar as atualizações diárias do número de infectadxs e mortxs pelo mundo, bem como as projeções de cenário para as próximas semanas, para, desde que se tenha o mínimo de honestidade intelectual, se convencer da gravidade do problema que estamos enfrentando – segundo dados de ontem, 29.mar.2020, são 718.685 infectadxs e 33.881 mortxs ao redor do mundo, o que dá uma taxa de letalidade de aproximadamente 4.7%, sendo importante considerar que estes são números relativos apenas a casos testados, ou seja, os números reais de pessoas que contraíram o vírus e que vieram a óbito em decorrência dele tendem a ser muito maiores. Não fosse pela atitude consciente e responsável de gestores estaduais e municipais – tanto à direita, quanto ao centro e à esquerda do espectro político –, que decidiram, à revelia da presidência da República, por impor uma quarentena preventiva aos estados e às cidades, estaríamos vivendo hoje números mais dramáticos e de crescimento mais vertiginoso do aqueles, ainda assim tensos, que temos presenciado ao fim de cada dia. Quando tudo isso passar, porque vai passar, e uma quantidade significativa de vidas for salva, ficará registrado na história que foram salvas apesar da atuação do presidente.
Em 2019, escrevi e publiquei, na revista Philia – Filosofia, Literatura e Artes, o ensaio “sobre lampejos em tempos de chumbo, ou, por uma comunidade de vaga-lumes, ou, o que pode a arte”, que segue disponível online. Assumindo uma perspectiva de escrita clínica, tentei fazer daquele texto um encontro de forças capazes de reverter o sentimento de derrota proveniente da eleição do ex-capitão do exército. Nele, eu termino dizendo que, não importando o quão pesadas fossem as nuvens de chumbo, nós sobreviveríamos. Ao grafar esta palavra, eu não poderia imaginar que hoje, cerca de um ano após tê-la escrito, ela ganharia contornos ainda mais dramáticos do que em março/abril de 2019. Se lá, “sobreviver” implicava permanecer ativo como força em face dos desmandos e retrocessos bolsonaristas, agora, em 2020, sem nunca dispensar a conotação anterior, ela também evoca a necessidade de preservarmos nossos corpos e os corpos de quem amamos, mesmo se eles não tiverem qualquer importância para o atual presidente.
Março não acabará amanhã, 31. É importante que todxs nós saibamos disso. Ouvir especialistas e o consenso mundial – excetuando o Brasil – em torno da necessidade de um rigoroso isolamento social é a melhor forma que temos para lidar, de maneira preventiva, com a ameaça do covid-19. Cuidemos umas e uns dxsoutrxs. Sobreviveremos.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!





Imagem: internet

01/04/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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