Um gesto clínico ao revés do planejado - Meu nome é Johni

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Um gesto clínico ao revés do planejado

Um gesto clínico ao revés do planejado

Eu havia decidido passar um tempo sem escrever uma linha que fosse sobre a pandemia que estamos vivendo ou assuntos correlacionados a ela. Dar um descanso a mim mesmo, sabe? Percebi que tenho sido tragado pela ansiedade em relação ao avanço do vírus e que o confinamento, muito embora eu o supusesse a parte mais tranquila desse processo, tem dificultado as minhas possibilidades de reação. Por isso, eu havia decidido passar um tempo sem escrever uma linha que fosse sobre a pandemia ou a respeito de questões derivadas dela. É preciso admitir quando a estratégia de escrita como elaboração de saúde falha e tentar outras alternativas, talvez o silêncio. Então, eu havia mesmo decidido passar um tempo sem escrever uma linha que fosse sobre a pandemia que estamos vivendo. No entanto, abril está chegando ao fim. E este, que não foi um mês muito generoso conosco, se despede de maneira sombria. De um lado, deixa em nossas bocas o gosto amargo de um mal que se avizinha cada vez pior: as últimas atualizações oficiais têm apontado um aumento significativo no número de mortes por covid-19 no país, o que parece indicar que restam poucos dias antes de começarmos a seguir a curva ascendente que diz das milhares de mortes diárias – experiência pelas quais passam diversos países, incluindo os Estados Unidos. De outro, deixa uma pergunta reverberando em meio ao espanto coletivo: “e daí?”.
“E daí?” – esta foi a forma com que Jair Messias Bolsonaro, que atualmente ocupa a posição de presidente do Brasil, eleito com 57.797.847 votos, respondeu à pergunta da imprensa sobre o então número de 5.017 mortxs por covid-19 em nosso país. “E daí?”. Eu havia prometido a mim mesmo passar um tempo sem escrever uma linha sobre Bolsonaro. Não que eu acredite que a evocação nominal por si só de forças maléficas produza algum mal – apesar de religioso, nesse sentido sou um pouco cético. Mas, no que se refere a este em específico, eu preciso admitir: sua presença, ainda que apenas em forma de nome, é suficiente para dar a cor e o peso do chumbo às nuvens ao meu redor. Eu havia prometido a mim mesmo passar um tempo sem escrever sobre Bolsonaro. No entanto, como se as notícias tratassem de amenidades cotidianas, ele perguntou: “E daí?”. E, não satisfeito, ainda completou: “Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagres”.
Como supor algo de verossímil no curto verbo “lamento”, se, no seu entorno, tudo o que é dito o contradiz? Primeiro, o descaso que expressão “e daí?” revela e que, por si só, já derruba qualquer possibilidade que o “lamento” acene com alguma verdade de fundo. Afinal, quem lamenta não interroga “E daí?” diante do fato que diz lamentar. Em seguida, a tentativa de isenção – como se não houvessem políticas sérias que pudessem ser implementadas, a começar pelo reconhecimento de que as orientações pelo isolamento horizontal são a nossa única maneira de frear o impacto que o avanço irrestrito da doença teria sobre o nosso sistema de saúde, já deficitário em situação de normalidade. Ou alguém duvida que estaríamos em situação muito pior se prefeitxs e governadorxs não tivessem assumido a responsabilidade em decretar medidas em prol do isolamento social, as mesmas às quais Bolsonaro se opõe? Por último, a piada sem graça, fora de tom e de hora – como já é habitual em suas infinitas aparições públicas. O fato de Bolsonaro se permitir a brincadeira – “eu sou Messias, mas não faço milagres” – diante de um número como 5.017 mortxs em virtude da pandemia só demonstra uma coisa: para ele, pouco importam as vidas que não sejam as de seus filhos, os únicos que merecem a atenção do presidente e o seu movimento (ilegal, imoral e, apenas por ênfase, criminoso) de defesa. O resto, é vida sem peso. O resto, é vida descartável. O resto, que se dane. Sim, que se dane. E daí? – talvez Bolsonaro cometesse o sincericídio que, no entanto, seria relevado como mera brincadeira motivada pelo espírito “tiozão tosco” do presidente por cerca de 30% da população brasileira.
O que me espanta e causa absoluta revolta não é a ignorância de Bolsonaro, nem a sua desfaçatez em se vender como imaculado, muito menos sua absurda incompetência ou a estrutura psíquica paranoica, que o faz perceber perseguição em todos os lugares – que, aliás, vem a ser uma estratégia para alavancar apoio popular em meio à narrativa de suposto um golpe iminente. O que me espanta e causa absoluta revolta não é fato de ele querer aparelhar a Polícia Federal e o Ministério Público para que estas instituições, que gozaram de plena autonomia durante os governos petistas, sejam braços do bolsonarismo, movimentando-se apenas em função dos desejos e interesses da cabeça-Planalto. O que me espanta e causa absoluta revolta não é que haja gente de tal modo submetida a uma representação patriarcal do exercício do poder que sempre precise encontrar um Pai para chamar de seu, acatar seus desmandos e aplaudi-lo acriticamente. Tudo isto é conhecido de outros carnavais. Quem realmente comprou a ideia que Bolsonaro (e sua família, diga-se de passagem) era um outsider antissistema sem qualquer suspeita de envolvimento prévio com crimes – uma espécie de alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado –, de três, uma: ou nasceu no dia da eleição já com título de eleitor em mãos para votar e, portanto, não acompanhou a trajetória absolutamente insignificante de seu candidato ao longo de suas quase três décadas no legislativo, ou, por alguma deficiência de nosso sistema escolar, nunca aprendeu que jornal é algo que se lê para ter ciência das coisas do mundo, ou, por último, de fato compartilha das posições autoritárias, irresponsáveis, preconceituosas, violentas e criminosas assumidas por Bolsonaro – e esta é a única opção sem ironia, por isso mesmo, a mais triste de todas.
O que me espanta é o desprezo pela vida que a expressão “E daí?”, dita em forma de um sincero supetão, põe a nu. Desprezo. Não existe outra palavra – descaso diz pouco. Pouco importa que essas 5.017 pessoas mortas à época – hoje, quando escrevo, o número oficial e subnotificado já se aproxima de 6 mil – tenham nomes, histórias, amigxs, parentes: pais, avós, filhos, netos. Pouca importa que entre essas 5.017 pessoas mortas à época estejam vidas próximas a nós, leitorxs deste texto: amigxs, pais, avós, filhos, netos. Pouco importa, inclusive, que, entre essas 5.017 pessoas vindas a óbito, haja eleitorxs dele, Bolsonaro – já sabemos, aliás, sempre o soubemos, que fidelidade não é o forte do presidente. “E daí?”, pergunta Bolsonaro. “E daí?”.
Eu havia decidido escrever sobre outras coisas, investir na delicadeza, sabe? Talvez um poema do Manoel de Barros para falar da beleza das coisas pequenininhas, pequeniníssimas, das coisas de pequenura redundante, de miudeza tiquinha, e de como elas, ao invés das pesadas enormidades gigantescas, são imprescindíveis para restaurar as nossas forças de vida. Mas, fui tragado pela gravidade de quatro letras e uma interrogação – “E daí?”. Esta pergunta muda tudo. Como não se espantar diante do desprezo absoluto pela vida? Como não se revoltar diante do desprezo absoluto pela vida?
Como não escrever contra o desprezo absoluto pela vida? A revolta também é um gesto clínico.

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Imagem: internet

01/05/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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