SOBRE ABRIL E SUAS SAUDADES - Meu nome é Johni

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SOBRE ABRIL E SUAS SAUDADES

SOBRE ABRIL E SUAS SAUDADES

Como se não bastassem o difícil processo de isolamento social pelo qual estamos
passando, responsável por nos deixar fisicamente longe de nossos amores, e um presidente
egocêntrico absolutamente inapto para conduzir o país neste momento de crise e desespero
(ou em qualquer outro, qual seja), as últimas semanas têm esgarçado a nossa capacidade,
sempre diminuta, de elaborar o sentimento de luto – tanto mais em relação àquelas pessoas
cuja sensibilidade se encontra permanentemente aberta às provocações que a arte faz à vida.
Desde o penúltimo dia de março, uma segunda-feira 30, quando recebemos o impacto da
morte do sambista baiano Riachão, de 98 anos, até hoje, sábado 18 de abril – um curto
intervalo de 19 dias ainda incompletos – foram outras quatro perdas significativas com as
quais tivemos de lidar – Luiz Alberto Mendes, escritor, 69 anos, falecido em função de um
aneurisma; Moraes Moreira, músico e cordelista, 72 anos, vítima de um ataque cardíaco
enquanto dormia na madrugada de segunda-feira, 13 de abril; Rubem Fonseca, escritor, 95
anos, morto dois dias após Moraes Moreira, na quarta-feira 15 de abril, em decorrência de um
infarto, e Luiz Alfredo García-Roza, psicanalista e escritor, 84 anos, que faleceu na quinta-
feira, 16 de abril, em razão das consequências de um acidente vascular cerebral sofrido no ano
anterior. Para além dessas mortes já confirmadas, fomos surpreendidos ainda com a notícia do
internamento, em estado grave por infecção urinária e pneumonia, quadro que levantou a
suspeita de covid-19, de Aldir Blanc, 73 anos. O compositor segue internado em condição
grave, mas estável.
Ao destacar estas 5 mortes, por favor não me entendam como se eu as colocasse acima
dos 2.378 óbitos ocasionados até hoje, 18 de abril, por covid-19 em nosso país, pessoas cujos
nomes sem sempre conhecemos. O número é pesado e, sabemos, em curva ascendente –
temos registrado, nos últimos boletins, cerca de duzentas mortes por dia, o que indica que
ainda não se estabeleceu o pico de perdas diárias de vidas, o que deve se dar entre o final
deste mês e os 31 dias de maio. Toda e qualquer vida tem, ou deveria ter, o mesmo peso, a
mesma significação. No entanto, o fato de, com tão pouco tempo de distância entre as mortes,
perdermos 5 nomes que deixam um legado significativo para a cultura, o pensamento e a arte
no Brasil – além de corrermos o risco não pequeno de também ficarmos sem o sexto – é uma
triste coincidência que não pode passar sem que as devidas homenagens aos artistas sejam
prestadas. Afinal, o nosso país já é (e tem se tornado cada vez mais) um território ingrato axs
que dedicam suas vidas ao pensamento e à arte, recompensando-xs parcimoniosamente com
quase nenhum dinheiro e com ondas severas de estrondoso silêncio. Entristeceu-me verificar,

entre alunxs do curso de Letras a quem dou aulas (virtualizadas), supostamente pessoas
abertas ao campo das artes, o amplo desconhecimento a respeito de Aldir Blanc, compositor,
em parceria com João Bosco, de uma das canções mais importantes e significativas da história
da música brasileira: o bêbado e a equilibrista. Isso, para não falar em “resposta ao tempo”,
eternizada por Nana Caymmi, ou “incompatibilidade de gênios” ou ainda a cruel “tiro de
misericórdia”.
A propósito do falecimento de Rubem Fonseca, escritor ao qual se deve a força da
literatura urbana brasileira no século XX, gênero narrativo ao qual também se filiava Luiz
Alfredo García-Roza, Marcelino Freire publicou um pequeno texto em Folha de São Paulo,
intitulado “Rubem Fonseca não escrevia sobre violência, mas sob violência”, no qual se
apropria do icônico conto “O cobrador” para reverberar cobranças em relação ao tudo o que é
subtraído cotidianamente de nós. Nada mais justo. De fato, nos devem, e nos devem muito,
embora xsendividadxs sejamos nós, docilmente submetidos a uma lógica de funcionamento
social que nos retira toda força de vida e nos faz incapazes de cobrar. Precisamos
urgentemente recuperar a nossa condição de credorxs e fazer pagarem, com os juros e as
correções devidas, por toda uma existência à mingua à qual estamos sujeitos. É isto o que nos
lembrava, lá na década de 1970, Rubem Fonseca. É isto que nos lembra Marcelino Freire em
seu artigo, retomando o aspecto atemporal daquele conto, atestando-o como uma narrativa
não datada.Antes, “o cobrador” se apresenta com força suficiente para reverberar a si mesmo
nos corpos daquelxs que o lerem, independentemente de quando.
Moraes Moreira, em seu último gesto de pensar o mundo por meio da poesia, publicou
em seu instagram, dois dias antes de seu súbito falecimento, o cordel intitulado “quarentena”,
no qual assume o medo em relação ao corona vírus, mas alerta também temer outras misérias,
como as injustiças sociais, a violência de nossa política e os diversos preconceitos que nos
atravessam e constituem a estrutura violenta de nosso dia-a-dia – misérias estas não aleatórias,
como um vírus, mas produzidas e replicadas pelo homem. Na última estrofe, fica registrado o
seu desconcerto com o mundo e sua cobrança por uma virada ética: “o que vale é o ser
humano / e sua dignidade / vivemos num mundo insano / queremos mais liberdade / pra que
tudo isso mude / certeza, ninguém se ilude / não tem tempo, nem idade”.
A arte é uma força em demanda de vida. Por isso, a morte de um artista, alguém que
nos é intimo sem que o tenhamos abraçado uma vez sequer em toda a existência, abre uma
espécie de lacuna em nosso necessário repositório de forças de vida, ao qual precisamos
recorrer cotidianamente para não sermos tragados pelos índices de subalternização que o
capital faz incidir sobre nossos corpos.

No entanto, a perda de um artista não pode ser comemorada como uma vitória pelas
forças fracas que organizam o status quo e o querem livre de qualquer tensão. Diferentemente
de outras condições, a vida do artista não se enquadra nos limites temporais nos quais o corpo
matérico se encontra enjaulado. O artista (re)vive a cada instante em que sua obra produz
encontros com os viventes. É possível ouvir as vozes de Riachão e Moraes Moreira, de Luiz
Alberto Mendes, Rubem Fonseca e Luiz Alfredo García-Roza. É possível sentir os seus
abraços. Por isso, proponho que, ao invés de seguir a tradição de celebrar um minuto de
silêncio em homenagem a estes artistas, façamos suas músicas tocarem alto ou seus
personagens ganharem vida nos afetos de nossa própria dinâmica corporal. Afinal, como certa
vez escreveram João Bosco e Aldir Blanc, a quem registro esta homenagem em vida e na
expectativa de sua recuperação, “a esperança equilibrista / sabe que o show de todo artista /
tem de continuar”.

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A LUTA CONTNUA, JOHNI VIVE!

Imagem: internet,

22/04/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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