SOBRE A REALIZAÇÃO DA COPA AMÉRICA NO BRASIL - Meu nome é Johni

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SOBRE A REALIZAÇÃO DA COPA AMÉRICA NO BRASIL

SOBRE A REALIZAÇÃO DA COPA AMÉRICA NO BRASIL

Esta semana, nós tivemos a confirmação de que, após a impossibilidade de Colômbia e Argentina, devido respectivamente à tensão política e ao avanço da pandemia de Covid-19, sediarem a edição 2021 da Copa América, torneio sul-americano de futebol de seleções, o Brasil o fará.

            Uma vez que campeonatos regionais, nacionais e internacionais estão em curso no país, com testagem rápida de jogadores e comissão técnica antes de cada embarque e partida, não parece haver o risco de o torneio promover um impacto significativo nos dados de contágio e óbitos por Covid no país. Seria uma incoerência se o argumento contra a Copa América residisse no perigo sanitário que o torneio poderia representar. Afinal, sediamos partidas das Copas Libertadores e Sul-Americana, ambas envolvendo times de outras nações e isto não tem, ao menos não diretamente, ocasionado um fluxo viral maior ou a entrada de novas cepas em circulação no Brasil. Não é por esta razão que temos obtido elevações de contágios e mortes, ou que novas variantes do coronavírus têm migrado para cá. Do ponto de vista, portanto, dos protocolos de saúde, a Copa América não representaria um risco significativamente maior do que os campeonatos que já vêm ocorrendo no país.

            Então, tudo bem sediarmos a Copa América? Bom… como os mais velhos ainda dizem na Bahia: “aí já são outros quinhentos…”.

            Se o problema não se coloca necessariamente sob o perigo de um impacto direto e dramático na saúde, ele é de outra ordem, alojando-se no campo ético. Na mesma semana em que a CPI da Covid tornou pública a injustificável demora para se responder aos contatos da Pfizer, que planejava promover o Brasil como vitrine para a eficácia de sua vacina, causou espanto e incômodo a celeridade com que o governo federal aceitou, em caráter de urgência, sediar o torneio sul-americano. Neste cenário, não faltou quem apontasse o descompasso entre prioridades ­– o que, aliás, é coerente com a gramática atual de Brasília, mais voltada para as bravatas do que para, propriamente, a administração responsável de uma nação.

            Houve também quem comentasse o fato como mais um de uma escalada de “loucuras” promovidas pelo atual presidente. Confesso gostar pouco dessa linha de pensamento: ao categorizarmos alguém como “louco” ou algo como proveniente da “loucura” – ainda que reconheçamos aí mais o efeito de uma hipérbole do que uma condição patológica –, o esvaziamos de qualquer racionalidade, despindo-o de qualquer resquício de lógica. O fato, no entanto, é que a atitude bolsonarista é advinda de um cálculo político perfeitamente racional e lógico, absolutamente preciso. Senão vejamos:

  1. Bolsonaro é rebento da ditadura militar e, não raro, replica estratagemas dos generais. É fato público o modo como a seleção brasileira de futebol, sobretudo na copa do mundo de 1970, foi agenciada pelos anos de chumbo como um dispositivo para neutralizar tensões e angariar apoio ao regime. Tanto nos idos de 1970, quanto no agora, 2021, a estratégia é a mesma:busca-se reverter, no campo simbólico, o sucesso obtido pela seleção em uma espécie de sensação difusa e entusiástica de que o país está dando certo. Isto é possível porque o futebol de seleções opera em um nível diferente do futebol de clubes. Enquanto este funciona como um elemento de cisão no [suposto] corpo nacional, fragmentando-o em paixões localizadas em times diversos e rivais, que não raro mimetizam os conflitos socioeconômicos e culturais entre cidades e regiões, o futebol de seleções apela para um sentimento de homogeneidade, pertença e patriotismo que nos é inoculado, à maneira de um veneno, desde a mais tenra idade. É comum, por exemplo, a cena patética de um torcedor ou de uma torcedora chorar em face dos times perfilados para a execução do hino nacional – ouvisse, esta mesma pessoa, o mesmo hino em outra situação, qualquer outra, no banheiro, por exemplo, e provavelmente não choraria. É, portanto, a cena da camisa amarela em campo, metonímia presentificada deste abstrato que é a nação, que catalisa o pathos, tornando-nos frágeis, ridiculamente frágeis, à captura por um ufanismo acrítico e perigoso. Caso a seleção seja vencedora, o que não é um cenário difícil de acontecer, pelo contrário, ainda se pode dizer que “o futebol trouxe alguma alegria ao sofrido povo brasileiro”, e haverá, como já houve, quem ouça isso com algum brilho nos olhos. Assim como os militares de 1970 souberam ler isso, Bolsonaro também o sabe. Bolsonaro está apostando alto em Tite, Neymar, Casemiro e companhia.
  2. Bolsonaro também sabe que, devido à radical polarização política que vivenciamos atualmente no Brasil, no que se refere ao seu capital político, ele não corre qualquer risco de perdas significativas: ao invés disso, se não houver ganhos, ao menos insuflará ainda mais sua base de apoio contra os “inimigos da nação” ­– expressão sempre usada por regimes com tendência autoritária para dizer daqueles que rejeitam suas ideias e práticas políticas. À esta altura, já sabemos que sequerabsurdos terríveis – como este cenário pandêmico que estamos agora vivenciando – são, por si só, capazes de comover um bolsonarista apaixonado à saída do território messiânico que as imagens de “líder”, “salvador” e “mito” convocam – afinal, messias são o caminho, a verdade e a vida, não é? Neste sentido, Bolsonaro sabe que a possibilidade de haver perdas políticas é muito restrita, uma vez que sua base de apoio está sempre pronta a justificar e legitimar qualquer gesto seu ou palavra sua. Em contrapartida, poderá, sim, ter ganhos: em caso de vitória da seleção, talvez consiga transferir prestígio; em caso de a imprensa se posicionar contra a realização do torneio ou de acontecer um boicote à Copa América promovido por jogadores e seleções [será no mínimo tragicômico a paranoia bolsonarista chamando Neymar de comunista safado], certamente sua horda de defensores subirá o tom e as ameaças contra tais profissionais – o que vem a ser o mais do mesmo do modus operandi que alimenta este ovo de serpente que é o bolsonarismo.

            O problema, portanto, de o Brasil se dispor a sediar a Copa América, mesmo não tendo ainda controlado a pandemia de coronavírus em seu território, não é a saúde do povo brasileiro – esta, nós já sabemos, desde antes de a pandemia, não ser qualquer prioridade. A questão que se coloca é o cálculo argutamente preciso que possibilita e “justifica” esta tomada de posição: um cálculo que opera um equacionamento de paixões tristes e violentas, tornando os corpos susceptíveis à captura totalitária e à identificação [orgulhosa] de si mesmos como cães de guarda, daqueles raivosos, que salivam. O problema está situado no campo ético. Ou melhor: em sua supressão.

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem:  Lucas Figueiredo/CBF

07/06/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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