SALVADOR E O SILÊNCIO SORRIDENTE - Meu nome é Johni

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SALVADOR E O SILÊNCIO SORRIDENTE

SALVADOR E O SILÊNCIO SORRIDENTE

Às vezes, alguns eventos do nosso dia-a-dia se apresentam tão distantes uns dos outros, que entre eles não adivinhamos, ao menos em uma primeira olhada, qualquer conexão. O fato de acontecerem em cenários distintos e com alcances não comparáveis nos parece suficiente para que nem sequer investiguemos a possibilidade de um solo fértil em comum que os faça medrar. No entanto, os vínculos que não se mostram como imediatamente perceptíveis guardam, na própria capacidade de dissimularem a si mesmos, muito do que organiza a erupção aqui e ali de gestos, falas e atitudes reveladoras de nossas mais diversas tensões sociais – muitas delas fundadas na absoluta dificuldade que o nosso modelo de organização social, reprodutor disciplinado da configuração instituída pela matriz colonizadora do Ocidente, historicamente apresenta em lidar com a diferença.

Tendo isto em vista, hoje eu quero fazer aqui um exercício: aproximar histórias. De início, elas não suscitam em nós a suspeita de estarem, de algum modo, interligadas. Separadas por dias e modalizadas em fatos não relacionados, estas notícias poderiam gerar diferentes postagens aqui, nesse blog – uma para cada uma, isoladamente. Por um lado, talvez se ganhasse em verticalidade na reflexão, se este fosse o procedimento adotado. Mas, por outro, permaneceria invisível aquilo que, aqui, julgo necessário observar: a forma como elas remetem a uma sistematicidade, a partir da qual se infere uma anuência generalizada às violências cotidianamente praticadas.

O fato disparador deste comentário é de conhecimento público. Atracado na Baía de Todos os Santos, em Salvador, desde o dia 24 de outubro deste ano, a embarcação Logos Hope – conhecida como “a maior livraria flutuante do mundo” – chegou à cidade grassando racismo religioso. O equipamento é mantido pela OM Ships International, organização internacional cristã imbuída de uma perspectiva neo-missionária, que, pouco antes da chegada do navio à capital baiana, postou, em sua página oficial no facebook, um pedido de orações em favor da tripulação, que atracaria em uma cidade onde se cultua espíritos e demônios.

(breve comentário entre parênteses: tenho ciência de este blog, nos últimos tempos, ter insistido no tema da intolerância do racismo religioso. Mas, não tenho como (e nem quero) fugir de retornar a ele aqui. O próprio evento solicita que assim seja).

Houve repercussão, é verdade. Após ser descoberta e noticiada pela imprensa local, a postagem foi apagada. Pedidos de desculpas e explicações de “não é bem assim” foram feitos – é estranho, para não dizer quase impossível, admitir como crível a hipótese que querem nos fazer acreditar, qual seja, a de que o post não condiz com a política da empresa, ainda que publicado por seu próprio perfil no facebook. No entanto, penso que as ações de tensionamento realizadas foram bem aquém do que deveriam ser. Não contesto o Ministério Público ou a imprensa, que, de um modo ou outro, cumpriram e ainda cumprem com o seu papel. Preocupa-me, isso sim, o abraço que a população deu ao navio, fazendo vistas grossas ou minimizando o fato ocorrido – e, infelizmente, não são poucas aquelas pessoas que, em silêncio ou em voz alta nos coletivos que passam pela zona do Comércio, onde se situa o porto, concordam com aquela postagem. Ainda hoje, dia 5 de novembro, véspera da desatracação do Logos Hope, é imensa a fila para visita ao navio. E o mais assustador: filas de crianças e adolescentes com uniformes escolares, indicando ser aquele um passeio organizado pelas instituições em que estudam, públicas e privadas. Cabem as perguntas: será que estas mesmas escolas propõem uma discussão séria e curricular acerca do racismo religioso? Será que estas mesmas escolas tensionaram junto ao seu público o conteúdo do que foi postado pela OM Ships International? Será que estas mesmas escolas abrem os seus espaços de aula para o cumprimento da lei 10.639/03, que institui como obrigatório o ensino de história e cultura dos povos negros no Brasil, os mesmos que são agredidos pelo preconceito embarcado naquele equipamento?

Para qualquer uma e para qualquer um que tenha trânsito pelas ruas e pelos ambientes escolares desta cidade de São Salvador da Baía de Todos os Santos, não há muitas dúvidas sobre a resposta àquelas perguntas: o mais provável é que não. De fato, o que o Logos Hope traz a Salvador não é algo que já não se veja disseminado na geografia desta capital absolutamente tensa. O povo-de-Axé sofre ataques constantes, agressões verbais e físicas quase diariamente. Não são raras as notícias (em jornais, ou não) de Terreiros invadidos, de assentamentos violados, de Babalorixás e Iyalorixás expulsxs de suas casas, quando não espancadxs e mortxs, e de grupos evangélicos, dos mais diversos segmentos, assediando pessoas nas porteiras dos Ilê Axé, nas ruas, nos ônibus, nas escolas, nas praças públicas, onde pregam com microfones, caixas de som e encenações de demônios sendo expulsos.

Enquanto escrevo este texto, grupos escolares estão visitando o Logos Hope. Eu não deveria me espantar. Lembro-me de Caetano e Gil, em Haiti, cantando o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina do Carandiru. Silêncio sorridente. Talvez seja isto o que eu tenha visto no rosto daquelas pessoas na fila, em triste algazarra alegre para entrar na embarcação. Talvez seja isto que eu tenha visto no rosto daquelas pessoas no ônibus, comentando o acontecido e defendendo a empresa: “eles não falaram de nenhuma religião, esse povo de candomblé que é encrenqueiro mesmo”. Sim. Silêncio sorridente – embora nem tão silêncio assim.

Salvador é vendida aos seus habitantes e turistas como uma cidade de tolerância e orgulhosa de suas matrizes africanas. Mas, não é raro encontrar, nessas ladeiras velhas como o mundo, versões ainda mais bélicas do Logos Hope. Versões que já estavam aqui, antes de o navio chegar. Versões que permanecerão aqui, com os dois pés ancorados no chão violento desta cidade, depois que o navio desatracar. Infelizmente, o navio não é um caso isolado: é só mais um.

 

Foto: Felipe Iuratã / MN

06/11/2019 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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