QUEBRAR A BRANQUITUDE - Meu nome é Johni

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QUEBRAR A BRANQUITUDE

QUEBRAR A BRANQUITUDE

O texto “carta dirigida aos meus amigos brancos que não veem onde está o problema”, da autora francesa Virginie Despentes, publicado no Brasil pela série pandemia crítica da n-1 Edições sob tradução de Márcia Bechara, é sobre a França, mas poderia muito bem ser sobre o país em que vivemos. A mesma estrutura dominante de negação do racismo que se encontra lá, “na França, nós não somos racistas”, encontra-se aqui. A mesma plêiade de eventos cotidianos da vida pública e privada francesa que, a despeito do discurso negacionista, desvela a presença estrutural do racismo lá, também opera por aqui. A adversativa “mas”, situada logo após “não somos racistas” desmonta a negação para fazer ver que, sim, a França é racista. Ou, como o texto igualmente alcança dizer do Brasil, que, sim, nós somos racistas.

Não é a primeira vez que utilizo de meu espaço neste blog para denunciar o racismo brasileiro. Embora tenhamos avançado no reconhecimento de nosso racismo estrutural, de modo que a discussão sobre ele tem alcançado os programas de tv, adentrando as casas de milhões de brasileiros, há ainda quem o negue ou acredite no discurso de que a mestiçagem brasileira criou certa fluidez nas relações inter-raciais. Este argumento leva em conta que, ok, até podemos ser racistas, mas que o somos menos do que outras sociedades – como se o racismo fosse uma questão quantitativa, ao invés de qualitativa. O lance não é estabelecer uma métrica arbitrária que compare o grau de violência das manifestações possíveis de racismo entre as diversas nações, mas, sim, compreender que a sua presença, não importando a forma de sua manifestação, é um mal que deve ser enfrentado e combatido sem qualquer tipo de atenuante discursivo.

É fundamental que nos indignemos diante dos casos mais flagrantes de racismo, aqueles cuja violência é incontestável. E acho que temos, de certo modo, conseguido alcançar um significativo avanço nesse quesito – os casos mais abertos de racismo, aqueles que escancaram sua feição abjeta, têm sido cada vez mais reconhecidos e denunciados. Por outro lado, no entanto, há um campo em que o avanço é muito mais lento, se há algum avanço. Trata-se de nossa resistência em identificar e combater em nós mesmos, ao invés de no outro, o nosso racismo mais cotidiano, impresso na fímbrias das pequenas ações, quase automáticas. E aqui o “nós” não é geral, não abrange a todos, mas a uma parcela da população que se identifica

[consciente ou inconscientemente]

com a branquitude, isto é, com uma ideologia que assume o acidente do fenótipo branco como valor – o mesmo grupo ao qual Virginie Despentes escreve a sua carta.

A branquitude é o esteio do racismo estrutural, o seu fundamento e a sua engrenagem. Ela organiza toda a cadeia de manifestações racistas cotidianas, desde aquelas em uma escala micro – significando apenas que, de tão naturalizadas, às vezes passam despercebidas por entre os corpos brancos que as cometem ou delas são cúmplices – até as ações mais extremas de extermínio. No fundamental, a branquitude inocula uma certa sensação de superioridade em relação ao corpo não-branco, a qual se desdobra em uma ignorância arrogante diante dos modos de existir do outro, como se invalidados por não se alinharem aos mesmos padrões da branquitude; nas piadas e nos comentários de teor racista, ditos sempre na presumida intimidade da branquitude; na percepção do outro como subalterno, ameaça ou perigo, independentemente de quem o seja ou de qual posição ocupe, ou, ainda, no silêncio de uma satisfação inconfessável diante do extermínio promovido pela polícia. A branquitude é genocida: ela mobiliza uma maquinaria de morte. Participar dessa engrenagem, não importando em que grau, é ser parte do problema. Como bem o disse Virginie Despentes:

“Eu sou branca. Saio de casa todos os dias sem levar os meus documentos. Pessoas como eu, é o cartão de crédito que subimos para buscar, quando o esquecemos. A cidade me diz que estou em casa. Uma mulher branca como eu, fora da pandemia, circula nesta cidade sem nem mesmo perceber onde a polícia está. E eu sei que se houver três deles sentados nas minhas costas até me sufocar – só porque tentei me esquivar de uma verificação de rotina –, as pessoas farão um escândalo. Nasci branca como outros nasceram homens. O problema não é apontar ‘mas eu nunca matei ninguém’, como se costuma dizer, ‘mas eu não sou um estuprador’. Porque o privilégio é ter a opção de pensar sobre isso, ou não. Não posso esquecer que sou uma mulher. Mas posso esquecer que sou branca. Isso é ser branco. Lembrar disso ou não, dependendo do humor. Na França, não somos racistas, mas não conheço uma única pessoa negra ou árabe que tenha essa escolha”.

[Obs: onde se lê França, pode-se ler: Brasil.]

O engajamento antirracista dos corpos brancos passa necessariamente pela quebra dos vínculos que os mantém atados à branquitude. Sem que se assuma verdadeiramente essa perspectiva, os corpos brancos continuarão a ser, consciente ou inconscientemente, parte fundamental do problema.

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Imagem: Getty Images/iStockphoto

27/09/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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