QUE NOSSOS FANTASMAS APENAS HABITEM MUSEUS DE CERA - Meu nome é Johni

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QUE NOSSOS FANTASMAS APENAS HABITEM MUSEUS DE CERA

QUE NOSSOS FANTASMAS APENAS HABITEM MUSEUS DE CERA

É curioso como algumas canções, se ouvidas hoje; que alguns textos, se lidos hoje, em meio ao horror que estamos vivendo nestes últimos anos, soam como premonitórios, ainda que, na verdade, elas não estivessem falando da iminência de qualquer futuro, mas da recorrência de um passado que não cessa de querer repetir-se.

            Eram os primeiros anos da redemocratização, quando nós saíamos do período cinza em que vivemos sob uma ditadura militar. Mais precisamente, 1991. O grupo gaúcho Engenheiros do Hawaii, então em sua formação histórica, composta por Humberto Gessinger, Augusto Licks e Carlos Maltz, lançava o álbum Várias Variáveis, um dos melhores e mais importantes de sua vasta discografia. A primeira canção, intitulada “O sonho é popular”, abre o disco sobrepondo duas vozes: a principal, que continua o encadeamento discursivo dos versos iniciais, canta “o sonho é popular/ eu li isso em algum lugar/ se não me engano é Ferreira Gullar/ falando da arquitetura/ de um Oscar/ o concreto paira no ar/ mais aqui do que em Chandigarh/ o sonho é/ popular”. Por baixo desse discurso, no entanto, posiciona-se uma segunda voz, praticamente abafada pelo volume que a primeira assume. Esta segunda voz, que não obedece ao mesmo compasso da primeira, diz: “uma página arrancada/ um segredo mantido/ em passagens subterrâneas/ sob a Praça da Matriz/ uma história mal contada/ uma mentira repetida/ até virar verdade/ (uma página virada)/ uma passagem subterrânea/ um segredo arrancado/ em passagens mal contadas/ até virar verdade/ a verdade a ver navios/ uma mentira repetida/ repetida/ repetida”. Há, portanto, um choque entre o discurso enunciado pela primeira voz, “o sonho é popular”, e aquele subterrâneo, trazido pela segunda voz, que o nega. Nega-o porque, se à época da redemocratização, era possível, enfim, supor que a dimensão do sonho havia sido restituída à população, antes censurada pelos generais, no entanto, em face de como não se problematizou a memória maldita da ditadura – tratada como uma página virada, que permanece como uma história mal contada –, tal ideia talvez se apresentasse sob a suspeita de uma mentira muito útil à conservação de um retorno a qualquer momento do que, então, era um passado recente. Não à toa, a canção termina com os seguintes versos: “um golpe em 61/ um golpe qualquer/ num lugar comum”.

            O mesmo motivo retorna noutra canção desse mesmo álbum, a décima, que tem o título “Museu de cera”. Nela, canta-se: “se não tiver instinto/ se não estiver atento/ se ficar com medo/ no exato/ momento/ alguém muito à toa/ soa o alarme/ veste o uniforme/ e transforma tudo em exceção”.A canção alertava para o risco de um retorno daquele que, ao longo do século XX, havia se consolidado como um modus operandi nacional: transformar – ou tentar transformar – tudo em exceção. O que nos faria supor que estávamos livres dessa ameaça, se insistíamos no silêncio e na impunidade diante dos crimes cometidos sistematicamente pelo Estado?

            E, no entanto, havia um sentimento de que estávamos livres dessa ameaça. Somos mestres do auto-engano.

            Em 1988, três anos antes da canção lançada pelos Engenheiros, Jorge Amado publicou O sumiço da santa, seu último grande romance. Nele, o autor investe em uma produção de memória acerca de toda a vileza que a ditadura representa, posto que não se alinhava ao silêncio como estratégia de superação dos anos dos generais. Afinal, não há qualquer cura em esquecer, apenas a repetição fantasmática do trauma. Em certa altura, Jorge Amado escreve:

“Havia uma realidade oculta, um país secreto, não noticiados. Gazetas, estações de rádio e de televisão encontravam-se limitadas, nas seções informativas, a fatos em geral pouco palpitantes. Reduzidas nas opinativas ao louvor incondicional do sistema de governo e dos governantes. Proibição total de qualquer noticiário, da menor alusão, a respeito do quotidiano de prisões, torturas, assassinatos políticos, violações dos direitos humanos, de comentários sobre a censura de espetáculos e livros, assim como referências a greves, manifestações, passeatas, protestos, movimentos de massa e tentativas de guerrilha. Nada disso acontecia na pátria feliz sob a égide dos generais e coronéis, a acreditar-se na leitura dos jornais. […]

A censura, a corrupção e a violência eram as regras do governo, carece recordar pois existe quem já tenha se esquecido. Tempo de ignomínia e do medo: os cárceres repletos, a tortura e os torturadores, a mentira do milagre brasileiro, as obras faraônicas e a comilança, a impostura e o venha a nós – há quem tenha saudade, é natural”

            Estamos em 2021. Mais precisamente, em 25 de maio de 2021. Estamos, novamente, sob o risco de uma ruptura democrática. A escalada do autoritarismo tem se acentuado como resposta à pressão sofrida pelo (des)governo federal em face de sua política irresponsável no que se refere principalmente (mas não apenas) ao coronavírus. E, não nos enganemos, há pessoas nas ruas pedindo por intervenção militar, pelo retorno do AI-5. Por favor, não podemos subestimar, mais uma vez, esse risco.

            À pretexto de um curso que, em parceria com um amigo, o poeta Victor Guilherme Feitosa, um dia eu ministrei, “arte contra a ditadura”, escrevi um pequeno texto, que funcionava como justificativa do evento. Reproduzo-o aqui, fazendo coro ao que escreveu Jorge Amado:

Sim. Carece recordar, pois existe quem já tenha esquecido o medo

e suas nuvens de chumbo e choque.

Sim. Carece recordar, pois existe quem já tenha esquecido a mordaça

e seu silêncio involuntário e tenso.

Sim. Carece recordar, pois existe quem já tenha esquecido a tortura

e seus paus-de-arara e cadeiras-do-dragão.

Sim. Carece recordar, pois existe quem já tenha esquecido a dor

e sua agonia permanente e hereditária.

Sim. Carece recordar, pois existe quem já tenha esquecido a morte

e sua produção de desaparecidxsinsegurxs

e de insegurxsvivxs.

            Uma vez que a dimensão do sonho ainda não nos foi mais uma vez tolhida, censurada, negada, eu retorno à canção “Museu de cera”, dos Engenheiros, para nela ouvir “tem que pagar pra ver/ tem que ver pra crer/ quem viver verá/ a cara desses caras/ num museu de cera/ tem que pagar pra ver/ tem que ver pra crer/ quem viver verá/ a força bruta/ a face oculta/ num museu de cera”.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem: Reprodução internet

25/05/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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