POR OUTROS MODOS (TEMPORÁRIOS) DE SER PRESENÇA - Meu nome é Johni

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POR OUTROS MODOS (TEMPORÁRIOS) DE SER PRESENÇA

POR OUTROS MODOS (TEMPORÁRIOS) DE SER PRESENÇA

Com o passar dos anos, e o processo constante de ressignificação que o tempo traz, alguns filmes podem perder força, pelo fato de serem por demais datados, ou, ao contrário, se potencializar ainda mais, uma vez que parecem dotados do estranho poder de antecipar questões que só agora, e não antes, estamos vivendo. Este é o caso do curta-metragem O velho rei, roteirizado, produzido e dirigido pela cineasta baiana Ceci Alves, que está disponível para acesso gratuito através de seu canal pessoal no youtube (deixo o link ao final desse texto).

            Lançado em 2013, em uma época na qual o isolamento em função de um vírus responsável por colocar nossas vidas em risco não era mais do que um cenário escatológico de um filme qualquer de apocalipse zumbi,O velho rei tematiza, em uma linguagem só delicadeza, a relação entre Climério, interpretado pelo icônico Antonio Pitanga, e Cléo, sua filha, vivida por Jussara Mathias. Longes um do outro por conta dos caminhos que a vida traça para si mesma, e que nos leva a reboque, Climério e Cléo têm saudades do tempo em que, ainda criança, a menina sentia a presença paterna junto a si contando-lhe histórias. Este é o mote para que ela envie ao pai uma câmera filmadora com o seguinte pedido: “conte-me uma história”. Mais do que a tentativa de recuperar, ainda que simbolicamente, uma experiência infantil, o gesto de Cléo convoca a presença do pai: ou melhor, convoca o corpo do pai a se fazer presença. Ela precisa daquele algo que só a voz não dá conta; que só a letra não dá conta; que só a imagem fixa em uma fotografia não dá conta: o ato simultâneo de ver-ouvir-ler-acompanhar-sentir o corpo do outro em um estar-aqui-juntxs.

            Climério, por sua vez, homem idoso e morador sozinho de um apartamento no Rio de Janeiro, aceita a convocação – e é contagiante o seu sim, ao fazê-lo. Talvez também ele se sinta solitário – a idade amplia as nossas inescapáveis fragilidades, não é mesmo? –; sem dúvida, também ele se encontra na saudade que a ausência da filha instaura. O seu sorriso, ao ler o bilhete enviado por Cléo, traduz, ao mesmo tempo, a alegria de estar em presença da filha e de ser presença para a filha – apesar de toda a distância que xs separa.

            A história que o pai decide contar à filha é a mais simples, a mais prosaica de todas: nenhuma fabulação extraordinária, nenhum detalhe grandioso, mas, o gesto afetivo de compartilhar momentos e paisagens de um dia em nossas vidas. Climério lava os pratos, dorme assistindo TV, contempla o nascer e o pôr-do-sol, visita amigos, dança ao som de BR-3, em gravação clássica de Tony Tornado e Trio Ternura. Apenas o comum, o infraordinário – afinal, é disso que se trata o estar junto, a partilha de um cotidiano mais que cotidiano [não são de eventos grandiosos que se tecem as miudezas da vida…]

            Cléo se emociona ao ver o vídeo do pai. Toca a tela do computador por onde o vê em instante pausado, acarinhando-o com a ponta dos dedos – ao pai, ao corpo-presença de Climério. Quem poderá dizer que elxs, pai e filha, não estão em um aqui juntxs?

            Como eu disse no início, há filmes que são potencializados com o movimento que o tempo empreende. Assisti a O velho rei apenas neste ano, em 2020, quando, por conta do risco representado pela covid-19, precisei passar – e ainda preciso – longos períodos afastado de meus amores: meu pai, minha companheira, minha segunda mãe e minha afilhada, os meus amigos, o meu povo-de-axé. Não é fácil lidar com a impossibilidade de abraçar aquelxs que sustentam o fio de nossa vida.

[no exato instante em que escrevi a última linha, recebi uma notificação da folha de são paulo informando que, a despeito do aumento exponencial no número de infecções e mortes no brasil por conta da covid-19, estamos vivendo o nível mais baixo de isolamento social desde o início da pandemia.]

Não é fácil lidar com a impossibilidade de abraçar aquelxs que sustentam o fio de nossa vida, eu sei. Mas, não é ainda a hora que em que poderemos estar desprovidxs de máscaras e de cuidados. Pelo contrário: a situação em que nos encontramos agora, nesse 19 de dezembro de 2020, quando escrevo esse texto, parece-me mais preocupante do que qualquer outra que tenhamos vivido durante a vigência desse processo pandêmico. Todo mundo sabia que a campanha eleitoral e as eleições promoveriam um aumento dos casos de infecção, com possível sobrecarga da rede hospitalar. No entanto, apostou-se irresponsavelmente no acaso, na sorte. Aliou-se a isso, o fato de muita gente estar esgotada da tensão decorrente do isolamento ou da necessidade de uma minuciosa higiene em tudo o que adentra o espaço da casa e, portanto, ter mandado ao raio que o partisse todo e qualquer cuidado. O resultado: estamos hoje com mais de 185 mil mortxs e, essa semana, mais precisamente na quinta-feira, voltamos a superar o número de mil novas mortes em 24 horas – fechamos a semana com uma média de 748 mortes/dia, um aumento de 29% em relação aos últimos 14 dias.

Mas, não quero falar sobre o que já se deu e, portanto, sobre o que resta apenas como um dado imutável, irreversível. A próxima semana me preocupa. Tradicionalmente, o Natal é uma data de reuniões familiares, de encontros entre pessoas que, por conta da correria de nosso dia-a-dia, às vezes pouco se veem, pouco compartilham da presença umas das outras, vendo no instante da ceia a oportunidade para um estar junto. E mais do que isso: é também uma época de intenso movimento nas ruas, nos shoppings, nas lojas, nos mercados populares. Diante disso, aminha sensação particular é a de que estamos em um beco sem saída, o que é gravado ainda mais pela condução irresponsável e genocida que o ministério da saúde e o governo federal têm exercido junto à política de vacinação [prolongamento fiel da condução irresponsável e genocida que têm encampado desde o início: é impossível esquecer aquele “– e daí?”]

Sinceramente, não sei o que será. Sei apenas que esse texto pode parecer completamente desconexo para quem o ler. Afinal, comecei falando de O velho rei e a minha escrita tinha certa suavidade, certa leveza. Terminei em tom menor, alguma tristeza, algum pessimismo – sentimento talvez inadequado para esta época do ano, mas, o que posso fazer? O fato é que, em decorrência do que estamos vivendo e da necessidade de preservarmos as nossas vidas e as vidas de quem amamos, eu gostaria que pudéssemos aprender com Climério e Cléo, com a delicadeza do cinema de Ceci Alves, a produzir outros modos de se fazer presença, outros modos de partilhar um estar aqui juntxs.

Link para assistir ao filme: https://www.youtube.com/watch?v=UOkDoF3A3TM

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem: reprodução internet

21/12/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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