POESIA NÃO É UM LUXO - Meu nome é Johni

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POESIA NÃO É UM LUXO

POESIA NÃO É UM LUXO

Audre Lorde, poeta negra e lésbica estadunidense, tem um ensaio intitulado “poetryisnot a luxury” – poesia não é um luxo, em tradução livre. Nele, Lorde desenvolve um argumento fundamental para entendermos a potência que habita o gesto de escrita dos corpos historicamente subalternizados. Para ela, a poesia implica a possibilidade de uma reversão da linguagem a partir da qual coletividades inteiras aprenderam a significar a si, ao mundo e, principalmente, a si mesmas no mundo. Por isso, a poesia não corresponde a um luxo de linguagem: antes, ela é um processo vital de instauração de outras possibilidades de vida, pois inventora de uma linguagem outra. Audre Lorde evidencia que a linguagem hegemônica – atravessada pela constante produção de infra-humanidade em relação a corpos não reprodutores de uma lógica centrada no homem cisgênero-branco-hétero-cristão-de elite – fomenta o desenvolvimento de subjetividades organizadas em torno de um silêncio revelador da ausência de uma gramática de si – ao menos, de um aparato de linguagem que proveja uma imagem de si enquanto lugar de força. Disso, resultam existências marcadas pelo medo, paixão triste que imobiliza a ação, dificultando a organização política em grupos e, portanto, a manutenção de um mesmo e sempre status quo que se organiza em função de uma mesma e sempre necropolítica. O medo é uma arma largamente utilizada pelas hegemonias para se perpetuarem como hegemonias, parece nos dizer Audre Lorde. Nesse sentido, ela convoca a poesia como (único?) meio possível para criar modos de dizer em que se possa dar palavras aos sonhos e às esperanças destes grupos sistematicamente subjugados – na fala de Audre Lorde, óbvio, este “nós” compreende, em uma perspectiva interseccional, mulheres negras lésbicas. “Dar palavras” significa precisamente: trazer para a linguagem aquilo que, antes, habitava o corpo como silêncio amorfo. Nestes sonhos e nestas esperanças, instauram-se novas possibilidades de sobrevivência e de mudança. Isto porque, para ela, é imprescindível que haja uma linguagem capaz de rasurar o campo hegemônico de significações, de modo a criar aberturas a novas ideias e, por consequência destas, ações concretas no mundo. Não há ação sem, antes, existir a palavra, diz Audre Lorde. Ou melhor: não há ação (revolucionária?) de mudança sem que, antes, se instaurem mudanças significativas nas palavras com que apreendemos o mundo e nossas possibilidades em relação a ele. A poesia, na condição de uma força criadora desde as palavras, é, portanto, uma arma por intermédio da qual corpos subalternizados criam mecanismos de resistência e afirmação de suas vidas. A poesia, quando nas bocas e nos corpos daquelxs que se desviam de um padrão instituído e naturalizado como normal, quando é tão somente hegemônico, é um instrumento político por excelência – não à toa a expulsam de salas de aula e de livros didáticos, estes lugares de preservação da correlação de forças que sustenta as desigualdades deste mundo. Sandro Sussuarana, poeta e ativista cultural, fundador e organizador do Sarau da Onça, um dos espaços de circulação de literatura negra/periférica mais poderosos de Salvador, tem um poema, intitulado “favela graduada”, que diz: “já passou da hora de a gente se informar/ de entender que ser malandro mesmo é estudar/ deixar os racistas tudo com raiva e se formar/ esfregar o diploma na cara deles e gritar/ que a revolução não vai ser com armas/ vai ser com papel, caneta e favela toda graduada”. Sandro está correto: a inclusão social passa, inevitavelmente, pela democratização do acesso ao ensino universitário e à pós-graduação. No entanto, não podemos esquecer que, muitas vezes, a academia funciona como o oposto de um gatilho para revoluções: é, não raro, um território de docilização dos corpos, de captura de desejos. Isso sem levar em consideração o atual processo de instrumentalização das universidades, o qual visa reduzi-las a meros espaços preparatórios para o mercado de trabalho. Talvez a aposta de Audre Lorde seja mais potente do que aquela lançada por Sandro Sussuarana. Corpos negros e periféricos precisam estar nas universidade (como estudantes, como professorxs, como diretorxs, como reitorxs) mas isto não é suficiente para que se fale em revolução, uma vez que a academia tem capacidade limitada – por seus próprios meios de conceber a ideia de conhecimento – de mudar a linguagem. Talvez o gatilho para uma revolução seja quando cada vez mais corpos femininos e negros e LGBTQI+ e periféricos e indígenas e. tomem da palavra poética como força para instaurar uma palavra inaudita, a qual muda tudo. E, a julgar pelos saraus, pelos slams, pelas rodas de poesia, pelas publicações independentes, pela circulação de poesias via redes sociais que acontecem e se multiplicam Brasil-mundo afora, talvez seja possível dizer: a revolução está acontecendo.

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Foto: Wilson Aiello/EPTV

09/07/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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