O ROSTO DE JESUS - Meu nome é Johni

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O ROSTO DE JESUS

O ROSTO DE JESUS

Ritual básico de todas as manhãs: levantar, lavar o rosto, beber um copo d’água e acessar os portais de notícia na vã esperança de que os problemas do mundo tenham se resolvido, como num milagre, entre as últimas 6-8 horas. Depois, em parte afetado pelos sonhos da noite, pelas manchetes lidas ou por coisas outras da vida, fazer anotações para futuros poemas, contos ou postagens neste blog. Quando não é o caso da palavra roçar a língua, ler a palavra de outro: nos últimos dias, Machado de Assis.

            Hoje, no entanto, ao verificar as últimas informações sobre a invasão da Ucrânia capitaneada pela Rússia, uma publicidade, nada aderente ao assunto em questão, capturou a minha curiosidade, esta força volúvel que me faz ir de um extremo a outro em segundos, ou menos. Era uma destas postagens caça-cliques que nos direcionam para sites que nunca visitaríamos, ou sequer imaginávamos existir. Anunciava: “veja retratos realísticos de personalidades históricas”. Apaixonado por história e por fotografia (racionalizei isto muito depois de ter clicado no link, confesso), acessei o site que, de fato, cumpriu o que anunciou, apresentando reproduções – às vezes em computação gráfica 3D, outras em modelos esculpidos em materiais que simulam a pele humana. Todas devidamente identificadas, com um resumo de quem seria aquela pessoa e dos artistas e cientistas responsáveis pela recriação.

            Avancei calmamente de um em um, prestando atenção nos detalhes e aceitando serem, aqueles rostos, de fato reais – ou, pelo menos, o mais próximo do real de que podemos chegar. Assim, eu vi Nicolau Copérnico, Símon Bolívar, Nero, Cleópatra, Santo Antônio, Meritamon, entre várias outras pessoas que, apenas de nome ou com a expressão de artistas de cinema, habitavam a minha imaginação – e a minha ignorância.

            Uma das faces reproduzidas, contudo, foi a de Jesus, personalidade histórica assumida como o messias para a cristandade. Digo “contudo” porque, a despeito de quase não haver dúvida acerca da existência histórica do homem (o mais é tão-somente questão de fé, sendo bizantina qualquer discussão a respeito), não há registro de sua real aparência. O seu local de nascimento e a sua vinculação étnica, apesar de constituírem dados suficientes para desmontar, como absolutamente falsa, a representação elaborada pelos europeus, qual seja, a de um homem branco, loiro e olhos azuis, ainda hoje assente como verdadeira no imaginário de muitas pessoas, são apenas um ponto de partida, o qual pode determinar os traços gerais de seu fenótipo, mas não as linhas mais particulares do rosto.Em todo caso, a imagem obtida é, sem dúvida, mais próxima do Jesus real do que aquela que ordinariamente vemos.

            Um parêntese: em minha fase iconoclasta, logo quando me desgarrei do cristianismo, tinha certo prazer em confrontar pessoas ao meu redor ferrenhamente seduzidas pela imagem europeia do Cristo. Naquele tempo, funcionava mais como afirmação de meu lugar não-cristão do que qualquer outra coisa, ainda que houvesse discussões subjacentes – todas com uma argumentação, à época, incipiente, pela rama. Hoje acho importante operar tal contraste (ponto positivo para o site a que fui levado a visitar) por outros motivos, muito menos pessoais: como parte da desconstrução do racismo que toma do corpo branco como imagem da virtude, portanto, de superioridade moral – condição esta que é correlata a outras hierarquias. Tenho visto, porém, pessoas muito ciosas de sua branquitude – ou da branquitude que lhes é imposta como valor – que, mesmo admitindo a impossibilidade de Jesus assumir as expressões a ele conferidas pela imagística europeia, argumentam que ele não tinha um rosto, retirando do Cristo a sua feição humana em prol de preservar apenas o lado etéreo, não-matérico, divino. Cabe perguntar se esta não é uma estratégia, inconsciente talvez, para resguardar a simbologia da branquitude, já que muitas delas continuam fazendo uso do imaginário europeu para adornar as paredes de casa, para compor os altares pessoais ou para proteger o corpo com escapulários.

            Voltemos ao site e à suposta imagem do Cristo. A postagem admite ser impossível ter certeza das feições de Jesus, afirmando ser a imagem uma aproximação realizada a partir de poucos dados, sobretudo, aqueles já ressaltados acima, a sua vinculação étnica e geográfica. O homem que vemos assume a expressão de um corpo que hoje identificaríamos – talvez a partir de algum estereótipo, ocidentais que somos – como árabe. A pele, em tons muito distantes do branqueamento produzido pelo medievo europeu, revela-se morena, à feição dos povos de origem árabe, podendo também ser identificada como negra em territórios marcados pelas tensões raciais oriundas da escravização transatlântica de africanas e africanos, bem como de posteriores projetos nacionais excludentes de pretos e pretas. Apesar de o site somar pontos positivos ao veicular uma imagem de Jesus que funciona como desconstrução da imagística dominante, ao anunciá-la e descrevê-la, a força internalizada da branquitude irrompe com tudo na linguagem: “como você pode ver na foto, Jesus provavelmente tinha traços rústicos”. O dicionário online Priberam anota 3 sentidos para “rústico”, na condição de adjetivo, e outros dois para a dupla condição de adjetivo e substantivo masculino. São eles:

rús·ti·co


(latim rusticus, -a, -um)

adjetivo

1. Relativo ao campo ou próprio dele. = CAMPESTRE, RURAL

2. Sem acabamento ou sem arte. = GROSSEIRO, RUDE, TOSCO

3. Que mostra falta de delicadeza ou de educação. = GROSSEIRO, RUDE

adjetivo e substantivo masculino

4. Que ou quem vive no campo ou numa zona rural. = CAMPONÊS

5. [Depreciativo]  Que ou quem não é instruído ou tem pouca instrução.


“rústico”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/r%C3%BAstico [consultado em 14-03-2022].

            O primeiro e o quarto sentidos arrolados não estabelecem qualquer juízo de valor, apenas indicam que a pessoa ou a coisa que é qualificada ou substantivada como “rústica” não pertence ao ambiente urbano, mas às zonas rurais. Até então, nenhum problema além, talvez, de uma anacronia – sendo a distinção campo/cidade, tal como a conhecemos hoje, uma construção histórica da modernidade, não sei se faria muito sentido qualificar alguém da época de Cristo como “campestre ou rural”. Em todo caso, não é esta a situação a que eu gostaria de chamar à atenção. O problema encontra-se nos demais significados acionados, todos depreciativos, os quais se sobrepõem ao sentido originário da palavra: grosseiro, rude, tosco, sem delicadeza ou educação, quem não é instruído.

            A intenção de quem produziu a nota talvez tenha sido simplesmente contrapor, à imagem idealizada de Cristo, uma ideia mais terrena, mais marcada pelas intercorrências da vida, ainda que breve. Pode ser. Mas, é necessário que a gente entenda que intenções pouco importam: ninguém tem acesso ao que está para além da palavra dita ou escrita e são elas – as palavras ditas e escritas – que circulam e produzem ressonâncias, nunca esta abstração inatingível, a “intenção”. Neste sentido, o discurso veiculado pelo site funciona de modo duplo: ao mesmo tempo em que visibiliza a imagem de um Jesus árabe ou negro, a desqualifica, desqualificando junto o corpo do qual aquele rosto é uma suposta metonímia. O que vibra em volume máximo na postagem é o grito da branquitude, que contra-ataca à desconstrução de um de seus maiores êxitos – a organização de um imaginário cromático em que se traduz toda uma hierarquia de valores, do Bem ao Mal; do delicado ao rústico.

            E como falei, no primeiro parágrafo, em Machado de Assis, voltemos a ele. O maior de nossos escritores foi um homem negro. No entanto, poucos estudantes o reconhecem assim: na impossibilidade de fazer vistas grossas a Machado, como o fez diante de outras tantas escritoras e outros tantos escritores negras e negros, a branquitude operou a identificação do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas como um sujeito branco. Afinal, reconhecer um intelectual negro acima (e eu diria: muito acima) de todas as referências brancas, tanto as de seu tempo como as de depois, implicaria desorganizar o sistema de hierarquias montado justamente para que a branquitude se conserve ad infinitumcomo força social dominante.

            Há um ponto conexo entre a discussão sobre o rosto de Jesus e o caso Machado de Assis – o controle da linguagem. A linguagem molda representações e elas, as representações, moldam a forma como vemos, pensamos e agimos no mundo – muitas vezes, sem que nós mesmos tenhamos qualquer consciência do fluxo de sentidos mobilizados por cada palavra empregada. Não é à toa que a branquitude não abre mão do poder que exerce a partir dela: até admira Machado de Assis, mas o representa como um homem branco; até admite veicular uma imagem de um Jesus não-branco, mas qualifica-o como rústico.

Para quem quiser acessar o site referido, segue o link abaixo:

https://www.history10.com/worldwide/aparencia-personagens-historicos-ta-pt/28

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem: Face de Cristo Santo Sudário – Reprodução da Internet

14/03/2022 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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