NEM TODO PASSADO ESTÁ MORTO E ENTERRADO - Meu nome é Johni

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NEM TODO PASSADO ESTÁ MORTO E ENTERRADO

NEM TODO PASSADO ESTÁ MORTO E ENTERRADO

Infelizmente, a expressão “teorias raciais do século XIX” apresenta um equívoco. Se, por um lado, ela demarca que a origem de tais constructos teóricos remete ao pensamento europeu oitocentista, o que é historicamente correto, por outro, causa uma certa sensação de que estas ideias estão vencidas, que já não mais encontram eco no tempo presente. No entanto, não é difícil observar como elas agiram ao longo de todo o século XX e ainda atuam agora, nestas mesmas semana e dia, nestes mesmo ano e mês. Decerto, não mais como um móbil do pensamento científico, que há muito tempo as descartou, mas, sim, como uma estrutura enraizada no imaginário médio da população brasileira, orientando, deste modo, a tessitura micro das relações sociais. As teorias raciais são um conjunto de postulações vinculadas ao paradigma científico moderno que emerge na Europa, ao longo dos séculos XVIII e XIX, como uma extensão daquilo o que intelectuais latino-americanos como Aníbal Quijano e Walter Mignolo vêm chamando de colonialidade. Isto é, a face obscura da modernidade, aquela que opera como processo violento de ocidentalização do mundo, constituindo uma geopolítica global sob a tutela e diretriz das metrópoles colonizadoras. Neste contexto, as teorias raciais visavam dar legitimidade científica ao suposto da desigualdade inata entre os grupos humanos, o que significa dizer que elas eram as responsáveis por constituir e validar uma hierarquia de raças, segundo a qual a espécie humana estaria disposta em grupos estanques, dotados de aptidões e inaptidões determinadas por critérios fenotípicos e/ou mesológicos. Evidentemente, o que se organiza junto a um pensamento como este é uma hierarquia de poder, de comando e de subalternização, que toma do homem europeu moderno como o ponto mais alto da evolução humana e relega os demais corpos e as demais epistemes a sentidos negativos, como os de atraso, primitivismo, degeneração e atavismo. Deste modo, corpos negros e indígenas, por exemplo, eram identificados como uma ameaça ao futuro de qualquer nação que pretendesse trilhar o caminho do progresso vendido pela Europa como única história possível – aliás, o médico Raimundo Nina Rodrigues, em seu Os africanos no Brasil, afirma que os negros vingaram-se dos horrores da escravidão mesclando o seu sangue ao das populações brancas, o que inviabilizaria a ascensão do Brasil ao panteão das nações civilizadas, argumento que se apresenta como uma reprodução da tese elaborada pelo francês Arthur de Gobineau, em 1853, como explicação para o declínio dos grandes impérios da história humana. Para ele, o sangue daqueles supostos como inferiores atuaria de forma deletéria ao se encontrar com o sangue europeu, degenerando as suas virtudes intrínsecas, fossem elas físicas, morais, psíquicas ou intelectuais – não custa lembrar que todo regime de apartheid implementado ao longo do século XX esteve assentado nestas concepções. No caso específico do Brasil, cujo projeto político, desde os tempos da colônia, sempre esteve atado à lógica da colonialidade, as teorias raciais entraram em cena a partir do último quartel do século XIX, quando já estava em curso um processo gradual que objetivava extinguir a escravidão. Neste sentido, elas funcionam de maneira a reorganizar a estrutura escravocrata de poder, isto é, a hierarquia de raças em vigência no país ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, de modo que ela permanecesse inalterada no pós-escravidão. Elas, as teorias raciais, se configuram como atualização moderna de um projeto de nação traçado sobre as bases da subalternização, do apagamento e da exclusão de tudo o que se apresentasse como dissidente do padrão instituído como norma pela matriz colonial de poder. Sendo assim, as teorias raciais se espraiam por todas as instituições nacionais, ficando raízes profundas no pensamento brasileiro a partir do final do século XIX até, mais ou menos, o período da segunda grande guerra. As faculdades de medicina e de direito, os museus nacionais, os institutos histórico e geográfico, as artes, em especial a literatura, são modalizações discursivas amplamente tocadas por estas concepções, de modo que elas se capilarizam inclusive entre quem nunca leu Gobineau ou Lombroso, Sílvio Romero, Paulo Prado ou Nina Rodrigues. É desta forma que as teorias raciais chegam ao século XXI, inoculadas como venenos quase imperceptíveis, em estruturas de longa duração, enraizadas no senso comum. Quando alguém acusa o cabelo de uma outra pessoa de ser “ruim” pode até não ter consciência do grau de racismo entranhado nesta frase, uma vez que desconhece a sua historicidade, mas está reativando as teorias raciais do século XIX, se não mais no espaço da macropolítica, certamente no espaço das microrrelações sociais. Isto porque “ruim” não é uma categoria estética – e ainda se o fosse, não deixaria de ser uma manifestação racista, pois a ideia do “belo” também é um produto histórico, político e social derivado da pressão exercida pela matriz colonial de poder. Quem diz “ruim” está movimentando uma categoria ética, ou seja, um modo de valorar o que é benfazejo e desejável ou o contrário, o que é maléfico e, portanto, indesejável – aquilo o que deve ser apartado de mim e dos outros por ser um agente pernicioso. A expressão “cabelo ruim” existe porque, na verdade, ela não aponta para nenhuma noção de beleza e nem para o cabelo em si. Ela existe como uma metonímia que toma do cabelo como parte representativa do corpo negro, ativando discursivamente a presença do todo em função da referência à sua parte. Desta forma, o que ela verdadeiramente diz é: o corpo portador daquele cabelo é nocivo, de modo que precisa ser afastado, excluído, apagado, morto. A mesma linha de raciocínio pode ser aplicada a outra frase comum no cotidiano brasileiro, que diz ser possível identificar o rosto de um bandido. Embora o crime, aqui entendido como um atentado qualquer à existência do outro, não seja um meio de ação exclusivo de um ou outro grupo humano, constituindo uma prática global, a famosa “cara de bandido” não é tão plural e diversa assim: a sua aparência é bem definida. Novamente, o que se encontra em jogo é uma tácita vinculação ao pensamento do século XIX, sobretudo, ao modo como o conceito de criminoso-nato, originalmente estabelecido pelo italiano Cesare Lombroso, penetrou e se articulou no Brasil. As teorias raciais do século XIX, portanto, não estão restritas ao século XIX ou à primeira metade do século XX. Elas continuam ativas no imaginário médio da população, onde fizeram morada. Assim, operam identificando a priori corpos negros como perigos iminentes ou potenciais agentes disseminadores do mal – aliás, o caso recente da Zara, no shopping Iguatemi de Fortaleza, não deixa dúvidas sobre isso.

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Imagem: Reprodução da Internet

24/10/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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