NÃO SE RESPONDE À BARBÁRIE COM MAIS BARBÁRIE - Meu nome é Johni

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NÃO SE RESPONDE À BARBÁRIE COM MAIS BARBÁRIE

NÃO SE RESPONDE À BARBÁRIE COM MAIS BARBÁRIE

Há poucos dias, Xuxa Meneghel declarou que pessoas em situação de cárcere poderiam ser aproveitadas como cobaias em testes de medicamentos. Essa fala se deu em meio a uma liveem que se discutia os direitos dos animais. Há uma implicação lógica neste cenário: tais seres, as pessoas em regime de privação de liberdade, têm de tal modo a sua existência deslegitimada que, em uma suposta escala de importância da vida, são posicionadas abaixo dos animais não-humanos. Mas, este não é um texto sobre a Xuxa.

            No início deste semestre, solicitei que meus estudantes de Direitos Humanos e Teorias Críticas respondessem a um formulário que produzi visando a um perfilhamento da turma. Como não exigi que se identificassem, imagino ter chegado a um resultado o mais próximo da realidade. Entre as perguntas, elenquei duas com o intuito de averiguar não apenas a percepção dos estudantes a respeito da temática dos Direitos Humanos, como também seu imaginário acerca daqueles a quem chamamos “bandidos”. 1. “A respeito da frase ‘bandido bom é bandido morto’, eu considero: correta/equivocada”; e 2. “A respeito da frase ‘direitos humanos para humanos direitos’, eu considero: correta/equivocada”. A primeira, obteve 11,8% de aderência, ou seja, de estudantes que a consideravam correta ou justa. A segunda, 32,4%. Há, igualmente, uma implicação lógica nesse cenário: se é verdade que dos 70 estudantes que responderam ao questionário, apenas 11,8%, o que corresponde a mais ou menos 8 pessoas, assumiram o discurso ultrarradical que reza pela produção de extermínio, 32,4% (algo em torno de 23 estudantes) deram vazão a alguma espécie de rebaixamento ou desumanização de criminosos – corpos de segunda ou terceira categoria, os quais, subtraídos do direito mais básico à dignidade, não haveria obstáculos a um tratamento degradante. Mas, este texto também não é sobre os meus estudantes.

            Entre Xuxa e uma porcentagem de meus estudantes, há uma certa linha de continuidade: em ambos os casos, embora em graus diferentes, impera um certo sentimento de vingança, o qual é ativado diante do espanto em relação às barbaridades que um ser humano pode cometer junto a outro ser humano – a lista é imensa, impactante, e está no jornais diariamente. É a gota de bile regurgitada que se veste sob a imagem de uma justiça mais imediata e definitiva.           

É compreensível, tal reação. Trata-seda reverberação do que há de mais básico em nós: o medo. É ele que nos movimenta para que sobrepujemos os outros antes que os outros se sobreponham a nós (porque o animal em nós entende pouco o que seja isto a que chamamos pomposamente de civilização; guarda ainda a memória dos tempos primeiros, nos quais o outro era sobretudo uma ameaça). Em “Mineirinho”, Clarice já comentou: “quem mata muito é porque teve muito medo”.

No entanto, o fato de ser uma reação compreensível não faz dela adequada ou aceitável. E isto por algumas razões. A primeira, de natureza ética, eu resumiria nesta pergunta: qual tipo de justiça se projeta a partir da produção de mais barbárie? Ou seja, como sustentar uma ideia de justiça, que tem a ver com a garantia e o exercício de direitos, retirando justamente os mais básicos dos direitos: o direito à vida e à dignidade? Se eu exponho presidiários a tratamentos experimentais, dos quais não se têm ainda noção ou controle sobre possíveis efeitos nocivos ao corpo humano, ou se eu aceito relegá-los a condições de vida completamente degradantes, que incluem, entre outras coisas, a fome e a tortura, como posso me qualificar como partidário ou arauto da justiça?

A segunda razão tem um caráter sociológico: em se tratando de Brasil, tais posicionamentos evocam, inconscientemente, uma perspectiva de “limpeza” étnica e social: basta verificar que há uma presença significativamente maior de corpos negros e pobres detidos em penitenciárias do Brasil do que outras identificações étnico-raciais ou de outros estratos sociais. Sabemos que o nosso país se organiza em torno de alguns preconceitos estruturais, entre eles o racismo e o de classe. Como são estruturais, estão naturalizados na linguagem cotidiana do povo brasileiro, o que significa que eles articulam imaginários sociais, modos de pensar, dizer e silenciar, além deformas de interação que não são percebidas naquilo que realmente são: violências. Sendo assim, o discurso virulento contra o (suposto) criminoso ecoa, enquanto sombra fantasmática, a rejeição à imagem geralmente associada ao corpo daquele sujeito, alguém negro e pobre. Caetano e Gil já nos contaram do “silêncio sorridente de São Paulo/ diante da chacina// 111 presos indefesos/ mas presos/ são quase todos pretos/ ou quase pretos/ ou quase brancos quase pretos/ de tão pobres”.

No momento em que cedemos aos movimentos primários da fúria ou da vingança, perdemos de perspectiva questões importantes, as quais têm nos feito avançar, em meio a muitos percalços, na direção de um entendimento basilar: a ideia de justiça tem a ver com direitos, não podendo haver qualquer justiça no mesmo ambiente (ou discurso) em que haja a supressão da dignidade e da vida. A manutenção desses direitos, mesmo na mais extrema e revoltante das situações, é nossa garantia, ainda que frágil, de finalmente nos afastarmos da barbárie.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem:  reprodução internet

29/03/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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