NÃO É APENAS UMA LUTA, OU, QUANDO O LAMPEJO VEM DO OCTÓGONO - Meu nome é Johni

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NÃO É APENAS UMA LUTA, OU, QUANDO O LAMPEJO VEM DO OCTÓGONO

NÃO É APENAS UMA LUTA, OU, QUANDO O LAMPEJO VEM DO OCTÓGONO

Não sei, mas tenho sido tentado a acreditar que a esperança – aquela que é força ativa, potência de agir – sempre encontra o seu caminho.
Esta semana, sem qualquer programação prévia ou cerimônia, me vi na companhia de um velho amigo, alguém cujo corpo não abraçava o meu já há alguns anos. Apesar do tempo que um ou outro, menos entendedor dos segredos da amizade, pode sempre compreender como descaso, Antonio Balduíno, mestre na arte de ser para x outrx – e o que seria a amizade se não isso, ser para x outrx? – abriu sorriso ao me ver. Estava lá, nas mesmas páginas de Jubiabá, quarto romance escrito por Jorge Amado, em 1935 – época, assim como a nossa, atravessada por perigosas tensões e ideologias nefastas.
É sempre bom voltar àquelxs que nos são, de um modo ou de outro, forças de vida – sobretudo, em um mundo e em um momento como este em que vivemos, tão fascinado pela morte (dxoutrx). Não precisei caminhar até a minha estante de livros nem sacar de lá, um tanto empoeirado, o referido volume. Baldo me encontrou exatamente onde eu mais gosto de vê-lo, no ringue de boxe montado a céu aberto no centro velho de Salvador: primeiras cenas do romance. Era uma luta que, por essas reviravoltas que o tempo às vezes dá, antecipava em um ano o que viria a acontecer nas Olímpiadas de Berlim, quando o corpo negro de Jesse Owens calou os discursos de supremacia ariana da Alemanha nazista, vencendo quatro medalhas de ouro – entre elas, a prova mais nobre do atletismo, o 100 metros rasos. Em cima do ringue, o também negro AntonioBalduíno, mais conhecido como “o derrubador de brancos”, combatia – e acho que nunca este termo fez tanto sentido para uma luta de boxe – o alemão Ergin, campeão da Europa.
Em 1935, quatro anos antes de a Segunda Grande Guerra eclodir, já não havia dúvida quanto ao terror implantado pela política nazifascista – embora isto não signifique que não houvesse, fora do eixo Alemanha-Itália, apoiadores muitos e entusiasmados de Hitler e Mussolini: basta ler os jornais baianos da época, disponíveis na Biblioteca Pública dos Barris, para se ter uma rápida noção do grau de fascínio que tais discursos de ódio, como uma legítima Medusa, exerceram sobre o Ocidente inteiro. Infelizmente, como uma serpente que dá a volta em si mesma, ideias de extermínio da diferença têm ganhado repercussão e adeptos – às vezes mais, às vezes menos – em todos os tempos.
Não era, portanto, apenas uma luta. Naquele ringue das páginas amadianas, o que levava jabs, diretos e cruzados não era o corpo ariano do campeão europeu, enfim estendido na lona, derrotado, mas a própria falácia de aquele fenótipo representar superioridades. Na impossibilidade de derrotarmos, nós mesmxs, a Hitler e Mussolini, à época ainda gozando de seus totalitarismos, Baldo ao menos nos trazia o lampejo de vê-los despidos de seus poderes, reduzidos ao corpo agora fraco e débil de Ergin.
Em 2019, AntonioBalduíno atende pelo nome de KamaruUsman. Nascido na Nigéria e radicado nos Estados Unidos, o lutador de MMA venceu, de forma avassaladora, na semana passada, o estadunidense ColbyCovington na disputa do cinturão dos meio-médios (até 77 kg) do UFC, mantendo o título. Covington tem mantido a sua carreira sobre os alicerces de uma persona especializada em trashtalks, ou seja, a produção de discursos polêmicos como um meio para vender uma luta – exatamente o que, poucos anos atrás, deu popularidade a outro canastrão estadunidense, ChaelSonnen, o qual emitia ofensas gratuitas ao Brasil e aos brasileiros como forma atrair atenção para os seus combates contra Anderson Silva, então o principal nome da companhia de artes marciais mistas.
(uma pausa: sei que tanto o que covington quanto sonnen apresentam nestes momentos são personagens – à exemplo daqueles que figuram em shows de lutas coreografadas e enredos folhetinescos que, no Brasil, ficaram conhecidos como “luta-livre” ou “telecatch”.vilões que devem ser contrabalanceados por aqueles que representam o justo oposto. no entanto, diferentemente do wrestling profissional, que se assume totalmente como encenação, o ufc procura se distanciar de qualquer aspecto dramatúrgico. embora personagens, covington e sonnen são vendidos como covington e sonnen, odiados e – meu deus! – amados como covington e sonnen. e, talvez, longe de todo holofote, covington e sonnen seja de fato covington e sonnen. em todo caso, não é um sintoma gritante do erro que é nosso mundo o fato de trashtalksserem mobilizadas como entretenimento? e, tanto mais, de serem aceitas e repercutidas ao ponto de, sim, gerarem lucros?)
Identificado com Donald Trump e, portanto, com todo um espectro político que se aproxima de extrama-direita, ao longo da preparação para a luta contra Usman, Covington movimentou as redes e o interesse público pelo embate com afirmações absurdamente racistas – e toda afirmação racista é absurda –, como, por exemplo, “a minha família já serviu na Guerra da Coreia, na Guerra do Vietnan. A minha família derramou sangue por esta bandeira [estadunidense]. O que a família dele [de KamaruUsman] já fez pela América (sic) além de servir na penitenciária federal?”.
(outra pausa: preparando este texto, eu li uma notícia sobre um incidente em uma partida de futebol pela segunda divisão do campeonato espanhol, a la liga 2. o jogo era disputado entre o rayovallecano, pequeno time de madrid cuja torcida é conhecida por assumir posições políticas progressistas, e o albacete. anos antes, o rayovallecano havia contratado o atacante ucraniano romanzozulya, que guardava ligações com grupos de extrema-direita na ucrânia, bem como havia manifestados gestos de apoio ao nazismo. sob pressão da torcida que não o queira vestindo as cores do time, o atacante teve seu contrato rescindido pouco depois. hoje, joga no albacete. no confronto do último domingo, 15, foi tensionado pela torcida do rayovallecano, que levou cartazes ao estádio e cantou alto contra a sua presença no campo de jogo. a partida foi suspensa. não vi o jogo, não sei mensurar o grau de hostilidade que reinava no ambiente. no entanto, não posso não me questionar em relação ao fato violências raciais contra jogadores negros e latinos em estádios da europa e mesmo da américa do sul e brasil não gerarem também a interrupção, ao menos parcial, dos jogos, nem medida mais duras contra torcidas ou clubes permissivos em relação a tal conduta. a conivência com tais cenas racistas não é mais um sintoma deste erro em que está o nosso tempo-espaço?)
Ao entrar no octógono para combater – novamente este verbo – Covington, KamaruUsman sabia que, junto a si, estavam milhões de africanxs, negrxs e imigrantes, ainda que estxs nem soubessem do UFC 245 e de tudo o que girava em torno dele. Não era apenas uma luta, dois corpos violentamente confrontando um ao outro para decidir qual triunfaria.
Ao vencer com um soco poderoso, tal qual, em 1935, AntonioBalduíno havia derrotado o alemão Ergin, Usman produziu o encontro dos tempos. Se lá, na época de Jubiabá, o clima era de tensão crescente e escalada de discursos e políticas baseadxs no ódio e no extermínio, hoje, neste ano de Trump.Putin.Bolsonaro.Orbán.Salvani não é diferente: o contemporâneo é feito de trevas. No entanto, se lá, em 1935, lampejos apontavam para a queda inevitável do nazifascismo – porque, afinal, empreendimento erguido sobre mentiras – e se apresentavam como forças fortes que convidavam a resistir um pouco mais, o mesmo acontece neste quando de onde escrevo. Daqui, vejo AntonioBalduíno sorrindo para mim. Daqui, vejo KamaruUsman sorrindo para mim. Daqui, os vejo sorrindo um para o outro, se abraçam. Daqui, sinto-me abraçado.
Como eu falei no início: nos meus momentos de maior tristeza e sensação de que tudo tende ao fim, certos lampejos vêm sempre em meu auxílio: a esperança – força ativa, potência de agir – encontra o seu caminho.

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A LUTA CONTINUA, JOHNI VIVE!

 

Foto: Reprodução da internet

18/12/2019 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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