“MAS… AINDA JORGE AMADO”? - Meu nome é Johni

Meu nome é Johni
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“MAS… AINDA JORGE AMADO”?

“MAS… AINDA JORGE AMADO”?

“Mas… ainda Jorge Amado?”

            Esta pergunta, feita a mim por uma ex-professora, eu a ouvi em março de 2013, na Universidade Federal da Bahia. Na verdade, lidei com ela outras tantas vezes, mas aquela, especificamente aquela,permanece na memória. Era a primeira semana do doutorado e nós, recém-ingressos, vivíamos o clichê de socializar as propostas de pesquisa. A professora não disfarçou um sorriso canto de boca quando me interpelou, nem o tom de acidez que conferiu ao que dizia. Difícil imaginar que esperasse alguma resposta. Difícil sequer pensar que fosse mesmo uma pergunta. Antes, parecia uma dura certeza:relevância nenhuma Amado teria face aos leitores da segunda década do século XXI.

            Eu calei silêncio. O que em mim silenciava não era, entretanto, por ação petrificante e terrível de nenhuma Medusa. Não havia, naquela minha ausência de resposta, nenhum indício dapassividade imóvel de quem é feito pedra. Era, isto sim, a maquinação silenciosa de um desvio – afinal, é sabido que a surdina favorece os desvios e estes, os desvios, são nossa frágil possibilidade de sobrevivência em meio aos apesar de tudo. Não concedi à minha professora o sentido de ironia que, talvez, ela tenha pretendido dar ao seu comentário. Em seu lugar, eu disse sim àquela pergunta, a abracei e a tomei para mim. O deboche, movimento de destruição sardônica do outro, foi revertido, de mim para mim, em provocação, força positiva mobilizadora de deslocamentos necessários: uma nova questão de pesquisa acontecia ali, naquele instante, e à revelia de quem a tinha suscitado.

            O que Jorge Amado pode ainda dizer para nós, leitoras e leitores em pleno 2021? Qual potência, se ela existe, decorre dos gestos políticos que ele aciona?

            Em geral, a produção ficcional amadiana é apresentada ao público como dividida em duas grandes fases. A primeira delas, que abrange os textos publicados entre 1933 e 1954, é prontamente reconhecida como portadora de um agir político, uma vez que se refere ao que Eduardo de Assis Duarte certa vez denominou como romance em tempo de utopia. Ou seja, escritos produzidos sob o efeito de uma sedução operada pelos índices de luta revolucionária legitimados pelo discurso marxista-leninista-stalinista: a classe trabalhadora, o sindicato, a greve, a figura do grande líder, o Partido Comunista, etc. A segunda fase, por sua vez, que se inicia em 1958 e segue até 1994, se caracterizaria como uma despreocupada crônica de costumes, na qual engajamentos políticos mais densos e relevantes estariam ausentes.

            Dito isto, quero logo demarcar a minha posição de discordância. A divisão em fases parece-me um equívoco semelhante às simplificações didáticas, que reduzem fenômenos complexos a esquemas desprovidos de qualquer pertinência. Toda a literatura amadiana se organiza a partir de dois movimentos simultâneos e relacionados entre si: recusa peremptória das relações socioexistenciais implementadas pela matriz colonizadora ocidental e, de maneira suplementar, a busca por alternativas, por outros modos possíveis de vida. Se pensada por intermédio desta clave, uma divisão em fases que se estrutura pela dicotomia política/não-política não se sustenta, uma vez que o posicionamento tensionante do status quo é um dado recorrente na produção ficcional de Amado.

            Aqui, cabe uma hipótese/provocação. Talvez, a dificuldade encontrada em associar os romances amadianos pós-1958 a uma escrita deliberadamente política diga menos da natureza ética de tais textos do que sobre os índices de leitura de quem os lê.Penso que o ruído se coloca em função de um descompasso entre as formas de posicionamento político acionadas pelo texto, que incorporou ressignificações operadas no pensamento de esquerda a partir dos anos 1960, e aquelas que a maioria de nós, ainda demasiadamente modernos, sabe reconhecer. 

            Para mim, a questão se coloca da seguinte forma: a percepção de que a União Soviética, então imagem presentificada da utopia comunista, se colocava como um regime totalitário também produtor de campos de concentração, presos políticos e mortes, o que se deu por volta de 1954, instaurou uma crise no âmbito das formas através das quais Amado sabia posicionar-se politicamente, o que se materializa em uma ausência de publicações entre os anos de 1954 e 1958. Neste período, se processa um movimento de transição entre os romances em tempo de utopia, cujo arco se encerra com o desmoronamento da utopia comunista, e os romances em tempo de heterotopia, cujos marcos iniciais são Gabriela, cravo e canela e A morte e a morte de Quincas Berro d’Água.

            Heterotopia é uma noção foucaultiana que busca investigar como determinados espaços menores, uma espécie de enclave, interagem de forma resiliente com os espaços dominantes, de onde emana uma espécie de poder conformativo da lógica hegemônica, de maneira que não restam por ele subjugados e reduzidos ao mesmo, mas relicários de uma diferença capaz de projetar modos outros de vida. Diferentemente das utopias, que Foucault entende segundo uma ideia de irrealidade cuja ação se daria no eixo do tempo – a transformação dos espaços de hoje naqueles de amanhã –, as heterotopias são espaços diferenciais efetivamente localizáveis no real concreto – elas não precisam instaurar outros espaços, elas já o são.

            As heterotopias, portanto, funcionam como um efetivo ponto interno de tensão na rede de posicionamentos do sistemadominante: atuam no “desde dentro” desta contextura maior, neutralizando-a ou revertendo-a em seu ímpeto universalizante e subjugador, uma vez que se organizam a partir de outras lógicas. Desta forma, as espacialidades dotadas de relações heterotópicas se configuram como uma espécie de contestação do espaço em que vivemos.

            Neste sentido, Jorge Amado mantém o primeiro movimento anteriormente identificado como fundador de sua escrita, a recusa à configuração socioexistencial dominante em que está inserido, mas atualiza o segundo, qual seja, a busca por alternativas. No lugar da crença inabalável na utopia comunista, os modos de vida divergentes ao modelo capitalista-burguês judaico-cristão postos em cena pelas heterotopias em direção aos quais é possível se deslocar.

            Não é à toa que o motivo da migração é tão forte na literatura amadiana a partir de Grabriela, cravo e canela. Não migração no sentido de deslocamento territorial apenas, mas entre modos distintos de vida. Quincas rompe com sua estrutura de mundo pequeno-burguesa, chama esposa e filha de jararacas, e migra às margens sociais para viver outro modelo de sociabilidade; toda a pequena população de Tocaia Grande, antes sistematicamente violentada em seus locais de origem, se renova em vida e liberdade naquela terra onde funda uma comunidade baseada nos princípios da solidariedade e do respeito; Manela e Adalgisa, em O sumiço da santa, que se movimentam do catolicismo dogmático, cerceador e punitivo em que viviam, para o candomblé, heterotopia em que aprendem o amor e a liberdade. Isso para não falar em personagens secundárias, como Malvina, de Gabriela, cravo e canela, que foge de Ilhéus em direção a São Paulo – movimento que conota um agir ativo contra os fechamentos da sociedade patriarcal.

            Como não enxergar nestes deslocamentos um agir político de desestabilização do mundo hegemônico em que vivemos? – quiçá, dotado de maior potência do que aquele formulado pela utopia?

Pedro Archanjo. Major Damião. Vasco Moscoso de Aragão. Tieta. Dona Flor. Quincas. O povo-de-Axé. As prostitutas e os vagabundos. Jacinta, Tição e Fadul. Personagens que nos olham, sorriem e nos convidam a entender que, sim, há outros modos possíveis de vida; sim, é possível fugir em direção a eles; sim, é da ordem do contemporâneo falar sobre eles; sim, expressá-los se configura como um gesto político potente e, portanto, – algumas respostas, minha cara professora, precisam ser longamente maturadas – sim, ainda Jorge Amado.

Vamos manter a história viva.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem:  reprodução internet

08/07/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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