LEVEZA, APESAR DE TODO PESO - Meu nome é Johni

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LEVEZA, APESAR DE TODO PESO

LEVEZA, APESAR DE TODO PESO

Os jornais diários têm sido generosos com a oferta de temas a serem discutidos aqui, neste espaço que ocupo quinzenalmente. Nos últimos dias, por exemplo, o discurso de Ricardo Alvim, agora ex-secretário da cultura do governo Jair Bolsonaro, esteve sob os holofotes em função de replicar não apenas uma estética nazista – figurino, modulação de voz, cenário, maquiagem, etc. –, mas, sobretudo, uma política nazista para as artes. Alvim emulou Joseph Goebbels milimetricamente, pondo a nu a circulação, em Brasília, de pensamentos e projetos políticos de inspiração naqueles postos em prática pelo totalitarismo de extrema-direita – ainda que grupos conservadores relacionados à presidência se esforcem em negar. Afinal, como não admitir, a não ser por um exercício canhestro de dissimulação, a gestação de um ovo da serpente, para citar o cineasta sueco Ingmar Bergman, no Brasil, se considerarmos que Ricardo Alvim se sentiu suficientemente autorizado e respaldado para produzir e veicular aquela transmissão nacional? Não fosse o absurdo da imitação a Goebbels, que repercutiu mal inclusive entre apoiadores do atual presidente da República, o (ainda mais) absurdo e perigoso edital proposto por Alvim com o intuito de disciplinar a produção artística nacional, utilizando-a como capilarização de ideais político-morais reacionários, estaria ainda em vigência. Talvez um ou outro jornal mais progressista o denunciasse, mas, dificilmente, teria conseguido movimentar uma pressão pública capaz de suspendê-lo.

No entanto, o texto de hoje não é sobre Bolsonaro-Alvim-Nazismo-etc. Noutra conjunção qualquer de coincidências, seria. Mas, em paralelo ao peso demasiado do espanto e da indignação diante de tais cenas, eu estava relendo um livro de que gosto muito, Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino. De meados da década de 1980, pouco antes de sua morte, o escritor italiano chamava a atenção do público para a leveza como uma demanda dos anos 2000. Produzir leveza contra um mundo que nos pesa cada vez mais sobre ombros, jápor demais escoriados. Calvino não fala em esquecer o peso ou fingir que ele não exerce sua força sobre nós. É algo mais próximo ao que o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, algumas décadas antes, vislumbrou ao escrever: “teus ombros suportam o mundo/ e ele não pesa mais do que a mão de uma criança”. Em face de um cenário no qual toda e qualquer barbárie se faz continuamente presente, como esse 2020 em que fantasmas de um passado de fato nunca ido se multiplicam, lembrar, ainda com Drummond, que a vida é uma ordem, “a vida apenas, sem mistificação” – a leveza produz saúde, abre possibilidades de vida. É, enfim, uma estratégia de resistência às diversas necropolíticas que nos atravessam dia após dia.

Mais do que qualquer outra invenção humana, a arte alcança realizar esta leveza, não à toa pretendem capturá-la, discipliná-la, tutelá-la. Octávio Paz, poeta e ensaísta mexicano, a pretexto de discutir o modo como a linguagem poética se desgarra do meramente referencial, não se resumindo a uma recriação mimética do mundo tangível, diz: pedras são plumas. A equivalência entre naturezas tão diversas jaz na capacidade de a arte fazer com que o mais denso dos materiais – ou mais pesada das situações – possa dançar em torno de seu próprio eixo, como o fez aquela sacola plástica, em Beleza americana, de Sam Mendes, aproveitando-se de um redemoinho de vento para substituir os pesados sentimentos de angústia e medo pelo vislumbre do delicado e da beleza.

Pedras são plumas: produzir poeticamente leveza onde só se advinha o peso de todas as coisas. Não se trata de sermos todxs poetas no sentido mais estrito que o termo admite, mas de exercermos a vida poeticamente. Assumir um “gesto de artista”, no dizer do professor Renato Rezende. Isto é, lidar com a concretude do mundo de maneiras não previstas pela própria concretude das coisas. Retirar o peso daquilo que é, em si, a imagem do peso: a pedra maciça eternamente empurrada por Sísifo montanha acima. Inventá-la leve, torná-la pluma.

Em paralelo ao peso da cena de Ricardo Alvim anunciando seu edital para a arte brasileira e à releitura de Calvino, cujo argumento em favor da leveza revigorou algo de força em mim, visitei a exposição Fartura e abundância, instalada no Palacete das Artes, em Salvador. Ali estavam reunidas diversas esculturas da artista plástica baiana Eliana Kertész, falecida em 2017, além de alguns murais seus. Todas as peças eram compostas de corpos femininos gordos – à exceção de um casal, composto por um homem e uma mulher, ambos gordos. Todas as peças, mesmo aquelas maiores, com cerca de 3 metros de altura, eram absolutamente leves. E não me refiro somente ao material em que foram feitas – resina –, mas, sobretudo, à graça com que desfilam delicados passos de dança ou ensaiam poses para fotografias. As gordinhas, como são popularmente conhecidas as obras de Eliana Kertész, são a própria encarnação da leveza.

O filósofo sul-coreano Byung-ChulHan, em Sociedade do cansaço, define o modo de vida contemporâneo como uma “sociedade de desempenho”. Isto é, um determinado arranjo dos corpos que se estabelece em função de uma demanda crescente e ininterrupta de produtividade em todas as esferas da vida – do desempenho financeiro inabalável em face das crises do capitalismo àquele atlético que se realiza na cama e emula os orgasmos de filme pornô masculino; da felicidade de mocinhxs em fim de novela ao sucesso de uma aceitação social irrestrita. Enfim: um modelo que nos coloca sempre a um passo do esgotamento físico e psíquico, uma vez queconjura o fracasso como se nele houvesse uma realidade mais terrível do que a morte e trata todo descanso – e, principalmente, todo ócio –como contraproducente.

Neste contexto de hipervalorização de desempenhos artificiais, a relação que se estabelece com o corpo é mediada por pressões de todos os lados. Como o modelo de pensamento ocidental se caracteriza por padrões binomiais, ou se é isto ou aquilo, se ao corpo atlético são associados os sentidos que orbitam a positividade – beleza, saúde, sucesso, desempenho, etc. –, os corpos gordos, por sua vez, são estigmatizados como repositórios de toda negatividade. A gordofobia encontra aí a sua origem.

As gordinhas de Eliana Kertész não são alheias ao peso que a sociedade de desempenho em que estão inseridas lhes direciona a cada instante. Provavelmente, como todo e qualquer corpo que se reconhece gordo – inclusive o de quem escreve este texto –, elas lidam com o bullying cotidiano, prática que aponta para a rejeição social de que são alvo. No entanto, aquelas gordinhas dançam, aquelas gordinhas amam, aquelas gordinhas sorriem. São “felizes, descontraídas, irreverentes, provocantes, sensuais, convidativas, generosas, libertas, etc. e todos os etc.”, afirma a artista criadora. São, sem dúvida, uma imagem muito mais fiel daquilo que vem a ser a beleza, a saúde, o sucesso, o desempenho.

Na assunção de se quererem gordos – como, aliás, também o é o caso de quem escreve esse texto –, aqueles corpos tensionam, no gesto suspenso de um passo de pluma, toda violência esculpida contra eles. Aquelas gordinhas são plumas.

Os três paralelos deste texto – Ricardo Alvim; Italo Calvino e Eliana Kertész – parecem um tanto aleatórios, eu devo admitir. Mas, o ponto é simples: a arte é capaz de inventar levezas onde só o peso é perceptível. Em uma semana dominada por Ricardo Alvim, a releitura de Calvino e o encontro com as gordinhas de Kertész revigoraram em mim algo que é da ordem da saúde: a leveza.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem: Esculturas de Eliana Kertész (As Gordinhas) – Foto de Aroaldo Jesus Costa | Olhares – Fotografia Online

27/01/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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