LER SOB A PERSPECTIVA DO AXÉ: UMA ABORDAGEM PARA O 21 DE JANEIRO - Meu nome é Johni

Meu nome é Johni
MENU
LER SOB A PERSPECTIVA DO AXÉ: UMA ABORDAGEM PARA O 21 DE JANEIRO

LER SOB A PERSPECTIVA DO AXÉ: UMA ABORDAGEM PARA O 21 DE JANEIRO

21 de janeiro, quando começo a escrever este texto, é data nacional voltada para o combate à intolerância e ao racismo religioso. O problema é antigo, remontando à própria natureza do processo colonizador que serviu de fundação ao que veio se chamar Brasil. A deslegitimação de outras cosmogonias e de outros sistemas de crença, bem como a demonização de suas deidades, pode ser facilmente visualizada desde os textos coloniais que procuram construir uma imagem acerca dos povos indígenas, africanos e afro-brasileiros, continuando nos períodos pós-independência, pós-abolição e pós-república. De fato, apresenta-se como uma questão cada vez mais contemporânea, dado o avanço de determinadas vertentes do neopentecostalismo cristão/evangélico, que têm, como característica, a radicalização de uma virulência em relação à diferença, principalmente se esta se referir aos modos negro-africanos de ser e de perceber o Sagrado.

              Um meio que tenho adotado para realizar uma discussão em torno desta problemática se dá pelo acesso a produtos culturais relacionadas ao universo afro-brasileiro – contos, poemas, canções, esculturas, pinturas, etc. Parto do princípio de que nem sempre somos conscientes das formações discursivas e ideológicas que nos interpelam em sujeito, o que significa dizer que tendemos à reprodução dos discursos que nos colonizam sem que tenhamos uma efetiva ciência disso. Não é à toa que, no clássico Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire afirma que uma educação voltada à neutralização dos processos de opressão que nos estruturam em sociedade deve emancipar igualmente o sujeito oprimido e o sujeito opressor – figura esta que, não raro, não se reconhece neste lugar, posto que por demais seduzida pelo canto de sereia das hegemonias. Assim, a construção de um espaço de discussão possibilita atuar na reversão de imagens pré-estabelecidas, as quais historicamente funcionam como uma forma de estruturação e manutenção de violências simbólicas e físicas. Trata-se de atuar em contraposição à ignorância, em ambos os sentidos que esta palavra admite.

              Dentre diversos outros materiais que tenho mobilizado com este intuito, a novela Bembé, de Ordep Serra, publicada em Ronda: oratório malungo, tem sido especial, tanto pela beleza de sua narrativa quanto pela amplitude de sua abordagem. Editado em 2011, na condição de produção literária vencedora do Prêmio Braskem/Academia de Letras da Bahia 2010, o referido livro traz, desde o seu título, signos que apontam para uma ambientação cultural profundamente enraizada na dinâmica das identidades experimentadas desde uma cosmovisão afro-baiana. O signo “malungo” – companheiro, irmão – remete a um vocabulário oriundo das tradições linguísticas e culturais Bantu, tão enraizadas na língua portuguesa falada no Recôncavo Baiano, espaço em que a narrativa se desdobra. Por sua vez, o subtítulo, “Ficções de Olufihan”, permite a antevisão das encruzilhadas em que Bahia e África se penetram e se fecundam: o nome nagô, conotativo de identificações fundamentais para as vozes ali ecoantes, aponta para outra zona cultural africana igualmente aportada no mar da Bahia, a região Yorubá. Da mesma forma ocorre com “Bembé”, festa tradicional que tem lugar na cidade de Santo Amaro da Purificação. Provavelmente, palavra derivada de Candomblé, a celebração anual do Bembé situa um conjunto de significados tensionantes da história oficial de nosso país, uma vez que mobiliza uma memória capaz de restaurar e encenar as estratégias de resistência dos negros escravizados como fator primordial para o término do regime escravocrata. 

              A estrutura narrativa emula uma longa entrevista concedida por Venan, que exerce a função de narrador e se caracteriza por ser a única voz da narrativa. Tudo que é narrado em “Bembé” não é outra coisa senão os desdobramentos históricos decorridos nos mais de noventa anos de Venan – com a diferença de tudo ser visto, sentido e comunicado a partir de sua experiência. Assim, o ritmo, a sintaxe, o vocabulário e a visão de mundo ativados pelo discurso emanam das tradições afro-baianas e populares da região do Recôncavo, sendo significados por intermédio delas. A Venan, voz periférica e resistente, cabe o direito de narrar a si próprio e, narrando a si, também à sua comunidade, o Quilombo e o Terreiro de Obaladê. A ele, cuja experiência é indissociável da continuidade histórica e cultural do Quilombo, cabe a enunciação da verdade e da memória daquele povo.

              O espaço que marca o nascimento de Venan é duplamente revelador. Em um primeiro sentido, porque a qualificação quilombola remonta à secular resistência negra ao durante e ao depois do período escravocrata. É, portanto, um território inscrito na história das lutas pela sobrevivência, afirmação e inclusão das populações afro-brasileiras no que se refere à construção do Brasil moderno, que se fundou – e ainda se reproduz – sob a égide da violência e da exclusão. Trata-se de um espaço que se estrutura e se movimenta a partir de uma diferença existencial à feição oficial da nação brasileira: o ser que ali se cultiva é de outra ordem de identificação, não se vinculando aos referenciais da matriz colonizadora ocidental. Por conseguinte, a emergência desta alteridade em cena, uma vez que construída desde o dentro do narrador, evoca a enunciação de percepções e experiências outras de mundo. De fato, quando visto através dos olhos de um narrador negro e quilombola, o cotidiano apresenta nuanças e sentidos destoantes daqueles conferidos pelas formações discursivas e ideológicas hegemônicas: ao invés de desdobramentos pretensamente harmônicos, inclusivos e democráticos, luta longa e renhida pelo direito à terra e à vida.      

Em segundo lugar, o Quilombo de Obaladê é relicário de uma ancestralidade africana zelosamente protegida e continuada pelo povo de Axé. Ali se dá a implantação de um efetivo continuum civilizacional africano-brasileiro. As formas culturais emergentes do lado de cá do Atlântico processam o diálogo de matrizes africanas diversas, mas sem reduzi-las a uma homogeneização amorfa e desprovida de potencialidade. Possível apenas em situação diaspórica e de resistência às estruturas hegemônicas, este ethos unitário reúne em si os povos de tradição Bantu, representados pelo InquiceZaze; Jeje, cuja metonímia é o VodunBadé, e Yorubá, que está presente através do Orixá Xangô Afonjá, além da própria localização geográfica do antigo Reino de Oió, hoje uma cidade situada na Nigéria. Três grupos étnicos distintos, mas que se irmanam sob o jugo da opressão escravocrata e racista à qual resistem e para além da qual projetam uma imagem contra-discursiva da formação histórica do povo brasileiro.

Nascido sob os signos culturais afro-baianos, bem como na condição de herdeiro de longa tradição de resistência negra, Venan segue, aos poucos, desenvolvendo e maturando a experiência/sapiência que o coloca como responsável por aquela população, também descendente das tradições de Obaladê – posição de liderança que ele, Bàbáláwo (literalmente, pai do Segredo; sacerdote de Ifá) e Bàbálossain, desempenha ao lado de sua esposa, Nieta, Iyalorixá do Terreiro ali plantado.

Dizer mais é estragar a experiência de quem aceitar este convite para ler Bembé e, lendo-o, acessar o Brasil sob os olhos de um corpo negro e de Axé – talvez, este encontro com outro possibilite um deslocamento em direção a modos de convivência que sejam efetivamente mais democráticos, isto é, desprovidos da violência estrutural que nos tem organizado em sociedade. Axé.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Foto: Zeza Maria

24/01/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

O que você achou? Deixe seu Comentário