LER SALVADOR [OU QUALQUER OUTRA CIDADE] COM ALEILTON FONSECA - Meu nome é Johni

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LER SALVADOR [OU QUALQUER OUTRA CIDADE] COM ALEILTON FONSECA

LER SALVADOR [OU QUALQUER OUTRA CIDADE] COM ALEILTON FONSECA

Em 2012, o escritor baiano Aleilton Fonseca publicou As marcas da cidade, reunião de contos cujas tramas se desenvolvem na paisagem urbana de Salvador, explorando não apenas o seu espaço geográfico mas também as suas conturbadas relações sociais, étnico-raciais e o universo simbólico atrelado à capital da Bahia.

            “Zé Preto” é a narrativa que abre As marcas da cidade. E, talvez, não houvesse mesmo outro conto que melhor ocupasse esta posição. Isto porque esta trama não apenas se desdobra sobre um pano de fundo estéril, mero cenário que poderia ser tanto Salvador quanto Havana, mas é marcada, mesmo arranhada pela Cidade da Bahia.           

De uma forma algo esquemática, é possível dizer que o conto comporta dois conflitos. O primeiro se organiza em torno da tríade narrador/cidade/Zé Preto, em que o vértice citadino assume a posição de destaque neste triângulo, uma vez que é por meio dele que decorre a interação entre os outros dois extremos. O segundo se estabelece através de insinuações sutis lançadas ao longo do desenvolvimento narrativo. Este novo conflito, que permanece em suspenso, eclode após o desfecho trágico do primeiro: ante o corpo assassinado de José Arimateia, o Zé Preto que titula o conto, o narrador desconfia de que os vínculos que o unem à personagem podem ser maiores do que jamais imaginados.  

            Mas, deixemos de fora os possíveis segredos familiares. Foquemos apenas no primeiro aspecto acima ressaltado. Ao agenciar o espaço urbano como dínamo das relações entre o narrador e Zé Preto, Aleilton Fonseca coloca em evidência as tensões sociais que produzem zonas de exclusão e violência no dia a dia da cidade.

            O conto possui três tempos. O primeiro remete ao presente da escrita, no qual o narrador se vê pontilhado de dúvidas e narra/revive acontecimentos do passado, de modo a buscar as pistas necessárias para entender a si mesmo. O segundo se constitui como aquele no qual se passa a ação propriamente dita, ou seja, a sequência trágica que culmina na morte de Zé Preto. Trata-se do eixo central do conto. O terceiro, por sua vez, configura o tempo dos flashbacks, os quais remontam à infância do narrador. Este tempo ativa um profundo contraste em relação ao segundo eixo temporal, ao menos no que tange às experiências vivenciadas no ambiente citadino, agora em tudo modificado.

            O narrador organiza o seu relato de modo a articular o segundo e o terceiro eixos temporais, de maneira a evidenciar o como a transformação do espaço citadino foi acompanhada de uma mudança nas relações sociais. Eis como Aleilton Fonseca inicia o conto “Zé Preto”:

Ninguém dava atenção a Zé Preto, mas ele e seu cachorro insistiam em me reconquistar com seus olhos penitentes. Tudo, no entanto, havia mudado […] Mas, insistiam, como se eu pudesse interceder por eles, em busca de um lugar em que ainda coubessem no mundo.

            O narrador se inclui entre aqueles que não davam qualquer atenção a Zé Preto, embora já o tivesse feito em datas anteriores.Ainda assim, da velha casa, desde sempre mal erguida e miserável, Zé Preto apela com os olhos para aquele único com quem possuía uma história, com quem detinha algum vínculo, embora enfraquecido em face do dia a dia corrido. De resto, naquele bairro agora de classe média, que tanto precisa se afastar da pobreza para se afirmar como algo diferente dela, quem mais olharia para Zé Preto, se não como uma mancha na paisagem ou como uma ameaça à segurança?

            Situado na infância do narrador, o “antes” o aproxima de José Arimateia; o agora, este tempo em que o narrador é já adulto, o afasta. Muito embora haja um indício de que a mudança na relação entre ambos tenha ocorrido por causa do tempo sem tempo das urgências cotidianas, o último período do parágrafo transcrito redimensiona a questão: neste mundo não há mais lugar para Zé Preto. Assim, o “antes” é reconfigurado como um tempo em que a personagem era ainda parte de um mundo; já o “agora” é atualizado quase que na condição de um desterro. Aleilton prossegue:

A vizinhança, totalmente renovada, agora os desconhecia. Queriam varrer os pobres da tapera triste, em plenas formas arruinadas por chuva, sol e janeiros. Eles eram considerados uma mancha feia naquela rua que cada vez mais se tornava chique.

            Em meio à vizinhança renovada – o que compreende não apenas a troca de habitantes do espaço, mas a substituição de uma visão de mundo por outra, vez que a “renovação” se dá em termos de classes sociais – Zé Preto passa de alguém integrado à dinâmica da rua para a condição de hostilizado e malquisto. Se “antes” os vizinhos interagiam e cuidavam do vestir e do comer da personagem, “agora” atiram pedras e descasos. José Arimateia, “antes” parte daqueles moradores que eram apenas um tanto mais remediados na vida do que ele, “agora” simboliza um entrave à delirante e belicosa fantasia higienista da classe média, nova habitante daquele espaço, que exige a limpeza de tudo que é entendido como mácula, posto que perturbador da imagem de ascensão social e pretensa riqueza e a ser associada àquela rua.

            A transformação experimentada pela referida rua é uma metonímia para se pensar a cidade de Salvador como um todo, cujo processo de atualização urbana é invariavelmente atravessado pela violência, pela exclusão de segmentos populacionais e pelo aumento das distâncias socioeconômicas. Assim, o narrador organiza o seu relato de modo a fazer emergir a contraposição entre a antiga convivialidade, situada no “antes”, em que Zé Preto estava inserido na vivência da rua, e a realidade do “agora”, atravessado pela ideologia burguesa em promover bolsões de riqueza totalmente apartados da pobreza em derredor.

            Assim como Arimateia, o narrador é também resquício do tempo passado, guardando certa preocupação em relação à personagem.No entanto, ele não foge completamente ao modo burguês de ver e de estar no mundo, afinal falta ao velho amigo. É verdade que ausência é justificada pelas demandas do escritório, mas,sem dúvida pode também ser lida pela clave de sua adequação aos novos vizinhos, o que se dá por meio do afastamento daquilo que acusaria sua classe social anterior: o elo com Zé Preto.

            O narrador se posiciona, então, como uma espécie de elo entre o “antes” e o “agora”. Por um lado, não se afasta de todo do círculo formado por sua nova vizinhança, não a questiona nem a critica; por outro, procura garantir, ainda que timidamente, um lugar no mundo para Zé Preto. Esse local assumido pelo narrador aponta para uma tentativa de conciliação entre as duas cidades, a Salvador contemporânea, em que não haveria um lugar para Zé Preto, e a antiga, na qual supostamente havia um convívio.

            O elo, no entanto, é frágil: a conciliação não parece mesmo possível. A nova classe social moradora da rua, por conta mesmo de sua ideologia, não “entende” existência inofensiva de Zé Preto, cuja docilidade é sempre reiterada pelo narrador a partir das cenas em flahsback. Toda e qualquer aproximação da personagem é vista como perigosa. O velho e tranquilo José Arimateia é desnudado de sua natureza amistosa e transformado em monstruosa criatura. A tragédia é anunciada e iminente. O conto prossegue:

Um dia aconteceu o pior. Eu estava no escritório quando recebi um telefonema revelando o inexato. Eu fosse até lá urgente. Davam conta de que Zé Preto havia sequestrado o filho da nova vizinha, levando-o para sua casa. As pessoas, instigadas contra ele, posicionavam-se em atitudes agressivas. Chamaram a polícia e reclamaram providências para, segundo diziam, salvar a criança das garras do doido perigoso.

            O narrador chega ao local apenas no ápice da tensão, quando já nada pode fazer para evitar a precipitação dos desdobramentos trágicos. A criança apenas brincava com Zé Preto, que não tinha outra intenção se não se divertir inocentemente em companhia de amigos – cena tantas vezes vividas anteriormente pelo próprio narrador. No entanto, o brilho de uma velha arma de brinquedo, que refletia o sol quando empunhada pelo menino, serviu como pretexto para a eliminação daquele “doido perigoso”: correria, dois tiros, José Arimateia morto.

            O narrador lê a Cidade da Bahia em seus processos de reorganização urbana, nos quais novas sociabilidades, decorrentes das ideologias das classes sociais que emergem e se apossam dos espaços urbanos, se impõem sobre as antigas. A cidade é indissociável do que nela se sucede. Zé Preto se apresenta vitimado pelo transformar-se desigual, violento e excludente da configuração citadina.

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Fonte: Reprodução Internet

19/07/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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