E AINDA HÁ QUEM DIGA QUE NÃO SOMOS RACISTAS… - Meu nome é Johni

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E AINDA HÁ QUEM DIGA QUE NÃO SOMOS RACISTAS…

E AINDA HÁ QUEM DIGA QUE NÃO SOMOS RACISTAS…

Escrevo esse texto com atraso. Originalmente, eu o havia pensado para que fosse publicado na última sexta-feira, 20 de novembro – data fundamental, em que se celebra o Dia da Consciência Negra (e “celebrar”, aqui, tem menos um sentido festivo do que político). No entanto, logo em seguida percebi que muitos outros textos, infinitamente mais potentes e necessários do que aquele que eu poderia escrever, seriam publicados nesta data. Pensei, então, em, no dia seguinte, escrever um resumo, meio que na perspectiva de um apanhado geral, do que aprendi ao lê-los – um corpo branco, crescido em meio ao privilégio de não ser considerado a priori uma ameaça ao estado, por mais que estude e procure se irmanar à luta antirracista, precisa ter sempre a postura humilde de um sujeito aprendente, que ouve. Mas, na manhã de sexta, pouco antes de eu iniciar as aulas que daria naquele dia, quando acessei os portais de notícias que leio no lugar do café, a primeira manchete que li me contava do assassinato de João Alberto Silveira Freitas por seguranças do Carrefour, em sua loja na cidade gaúcha de Porto Alegre. A segunda me trazia a informação de que o vice-presidente, Gen. Hamilton Mourão, ao comentar o caso, disse sentir muito pela vítima, mas que não via racismo no caso. Aliás, que não via racismo no Brasil, apenas desigualdade. Parei, respirei um pouco: havia uma aula para dar, e eu precisava estar minimamente bem. Depois do encontro com xs estudantes, baterias recarregadas, voltei às notícias. Então, li que o presidente Jair Bolsonaro, em seu discurso na cúpula do G20, não somente repetiu a posição antes enunciada por seu vice, como foi além: disse que o ato de denunciar racismos brasileiros faz parte de uma espécie de conspiração para desestabilizar o país, inoculando o “ódio entre raças”. Em ambos os casos, Mourão e Bolsonaro, a mesma lógica: o Brasil não é um país racista, afinal, trata-se de uma sociedade amplamente miscigenada. Racistas são os Estados Unidos, que viveram e vivem em completa segregação racial. Discursos como esses, enunciados a partir dos lugares, das situações e do tempo em que o foram, são por demais fortes/ simbolicamente/ para eu não me abalar.

A comparação com a experiência estadunidense sempre é convocada em auxílio daquelxs que têm alguma dificuldade (ou completa falta de vontade) em reconhecer a estrutura racista que nos moldou e molda em sociedade – e isso não é de hoje: mesmo um escritor como Jorge Amado, que em seus romances tantas vezes denunciou o racismo brasileiro, comentava em entrevistas que, embora houvesse milhares de racistas no Brasil, o Brasil não era uma sociedade racista; que racistas eram os Estados Unidos. O que supostamente sustenta esse argumento é o fato de a sociedade estadunidense ter elaborado um sistema de apartheid racial enquanto, no Brasil,ex-senhorxs e ex-escravizados encontravam-se em “zonas de confraternização”, na qual as diferenças étnico-raciais se dissolviam em prol do surgimento de um povo mestiço, desprovido, por sua própria origem, dos preconceitos de raça que grassavam alhures – tal, em resumo, é a tese de Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala.

No entanto, o fato de o racismo brasileiro ter se desenvolvido de modo diferente daquele operado nos Estados Unidos não implica que ele seja inexistente ou menos violento – aliás, particularmente, não considero que seja possível estabelecer uma tábua de valores em que se meça graus mais ou menos violentos de racismo: trata-se de assumir que, independentemente de sua modalidade de apresentação, o racismo é, em si, uma brutal violência, não sendo possível minimizá-lo ou dizê-lo brando.

A comparação Brasil-Estados Unidos é sempre feita no sentido de salvar a imagem de um país harmonioso, que criou para si a falácia de uma “democracia racial” – na qual, ao que parece, muitas pessoas ainda acreditam ou têm o interesse em acreditar, afinal, negar que haja racismo no Brasil e, portanto, atuar enquanto agente neutralizador da potência disruptiva oriunda de contestações negras, equivale a resguardar privilégios brancos. No entanto, se a comparação serve para alguma coisa, o é em uma direção muito diferente da pretendida: ela nos mostra como o racismo brasileiro foi muito mais eficiente do que aquele que teve lugar nos Estados Unidos da América. Ou seja, não se trata de comparar graus de existência ou violência, mas, sim, de eficiência em se fingir invisível e se manter operante desde um lugar não imediatamente reconhecível. Nenhum ou nenhuma estadunidense jamais duvidou do fato de morar em uma nação abertamente racista, aliás, muitxs inclusive se orgulham disso sob os capuzes brancos que vestem. No caso brasileiro, por sua vez, a luta antirracista precisou primeiro provar que éramos (e que somos) racistas – e há ainda (muita) gente (branca) que não se convenceu disso, ou, que não quer se convencer apesar de, dia após dia, serem inúmeros os casos de racismo que têm lugar nas ruas e nas casas desse país: basta saber ler os dados coligidos anualmente pelo Atlas da violência ou saber ouvir/ler intelectuais como Djamila Ribeiro, Sílvio Almeida, Thiago Amparo, Carla Akotirene, Sueli Carneiro, Cuti, Lande Onawale, Lívia Natália, Conceição Evaristo, etc.

A falácia da democracia racial sustenta o imobilismo de uma estrutura econômica, política, social e educacional a partir da qual corpos negros são ceifados diariamente. Vê-la assumida como discurso oficial, encampada pelos dois representantes máximos da nação – o presidente e o vice –, ainda mais em uma perspectiva de diminuir o grau de violência de um crime bárbaro, é, para usar um clichê antigo, presenciar a volta daquilo, que, tendo se enraizado em nós, nunca efetivamente nos deixou: a desfaçatez com que nos fingimos ser algo que nem de longe o somos.

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas escancarou mais uma vez as veias abertas do racismo brasileiro. E cabe dizer: os assassinos não são apenas os covardes seguranças do Carrefour, mas também quem filmou e não interviu, quem viu as filmagens e não se indignou, quem foi perguntado e se calou num silêncio sorridente, para citar Gilberto Gil e Caetano Veloso, em “Haiti”. Os assassinos são todxsaquelxs que, a despeito de nosso real mais concreto, insistem em dizer que não somos racistas, uma vez que somos um povo mestiço. Estrategicamente, essas mesmas pessoasfingem desconhecer, ou esquecer, que a nossa tão elogiada mestiçagem (e KabengeleMunanga já perguntou: qual povo não o é?) está largamente ancorada na invasão e conquista das terras indígenas, na escravização dos povos negros africanos, no estupro branco de mulheres negras e indígenas.Como algo que tem as suas raízes em tantas e tão brutais violências pode ser símbolo de algo que não seja a nossa própria e indisfarçável violência?

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem: reprodução internet

25/11/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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