APESAR DE TUDO, PERMANECER AINDA AQUI - Meu nome é Johni

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APESAR DE TUDO, PERMANECER AINDA AQUI

APESAR DE TUDO, PERMANECER AINDA AQUI

Alguns textos são significativamente mais difíceis de serem escritos do que outros. O que estaria aqui, no lugar deste que vem a publico, é um deles. Por ora, vou deixá-lo guardado em algum canto, remoendo as palavras para elaborar alguma possibilidade posterior de dizer. Em seu lugar, entrego um trecho de outro, escrito em novembro de 2018, em virtude de uma mesa-redonda para a qual fui convidado no Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia, em Salvador. A propósito da data em que eu o retomo, 30 de setembro de 2020, último dia deste mês amarelo, dedico-o a todas as existências que, dia-a-dia, produzem aberturas em demanda pelo sentido forte da palavra vida.
Proponho que observem uma foto que eu mesmo tirei, já não lembro muito bem onde: (Foto no inicio da postagem)
Quase tudo nesta imagem é desolação e tristeza; nela, quase tudo é força proibitiva do não impondo-se sobre a vida. A áspera superfície daquelas tantas pedras, incapazes de traduzir mais do que o sentido de infértil dureza, opera como uma metonímia deste quase todo. O solo, mais areia do que terra, parece hostil ao que quer que seja. Restos inorgânicos – pequenos fragmentos de azulejo, pedaços de pano, garrafas de vidro, artefatos de plástico – acumulam-se no primeiro plano da imagem, misturando-se sintomaticamente aos sobejos do que outrora fora vida: árvores tombadas. E ali, no canto direito, tocada por um tronco que caiu e em meio a galhos retorcidos de tanta secura, também eles caídos, uma privada, este lugar onde se excreta os dejetos do corpo, justamente aqueles imprestáveis à manutenção de nossa vida, aponta, em direção ao nosso olhar, sua saída para o esgoto. Qual um jato, ela expulsa para fora de si, para fora da dimensão plana desta fotografia, seus atravessamentos de agonia. Território do descarte, afinal, quase tudo nesta imagem orbita o sentido de morte.
Por que, então, fotografar tal cenário e, mais ainda, por qual razão trazê-lo aqui, neste texto que se anunciou enquanto lugar de demanda pela vida?
Acontece que a palavra quase pertence a uma classe especial, não prevista em gramáticas: a de palavras-fissura. Quase é palavra indócil a todo e qualquer projeto de hegemonia. Produzidas sob a égide do quase, as imagens tocam o real nele invariavelmente inscrevendo um espaço, ainda que mínimo, de resistência, de não-capitulação da diferença àquilo que, se descrito por intermédio de outras palavras, se apresentaria como um triunfante processo totalizador. O quase impede que o todo se cumpra.
Proponho agora que desloquemos o nosso olhar um pouco para a direita em relação à privada daquela foto. Basta um pouco. Talvez, menos de metro. Ali, uma árvore, de tronco ainda fino, de altura ainda mediana, mantém-se em pé. Outras iguais a ela, outras bem perto dela, tombaram. Ela não. Ela continua. Ao fundo, é verdade, há verdes maiores, mais vistosos. Mas, afastadas desta espécie de cemitério em que se constitui o primeiro plano da imagem, este lugar em que a não-vida parece soberana, contrastam de modo menos intenso com ele. Aquela, porém, ao lado da privada, ao lado de troncos e de galhos caídos, faz ecoarem em mim os versos iniciais de Salgado Maranhão em Deslimites 10:

    eu sou o que mataram
    e não morreu,
    o que dança sobre os cactos
    e a pedra bruta
            - eu sou a luta.
    o que há sido entregue aos urubus
    e de blues
        em
        blues
    endominga as quartas-feiras.
            - eu sou a luz
    sob a sujeira.

Sim, uma luz sob a sujeira. Escondida. Soterrada. Mas, nunca apagada. É preciso driblar os entulhos, desviar da aridez, esquecer a privada e os cacos de vidro que se colocam entre a imagem e quem a vê para que, enfim, ela se apresente enquanto desafio e sobrevivência.
Contudo, é tão mais fácil visualizar, nesta fotografia, a presença da morte do que daquilo que resta, daquilo que mataram e que teimosamente não morreu. Afinal, ela, a morte, salta aos olhos de imediato. Está em quase todo lugar. Toca a quase tudo. Uma linha de fuga deleuziana, entretanto, habita a palavra quase, não nos esqueçamos. A árvore trai a certeza de seu fim, devém vida, devém o que não morre e dança sobre os cactos e a pedra bruta – imagem de brandura contra a dureza, o delicado de um corpo que baila, calvinamente leve, neutraliza o trato grosseiro e espinhento que pedras e cactos dedicam a pés desnudos. A árvore, assim como o poeta, é força que luta pela vida. Outra vez Salgado Maranhão, agora em poema intitulado Grão:

    todos esses séculos de não
    que tento enfeitar com pérolas
    com gemidos e tambores.

    quem me conhece
    sabe o meu labor
    pra tirar do chão da dor
    o simples grão que sou.

É tão mais fácil, em face daquela fotografia, ver, a um só tempo, a materialização de todos esses séculos de não que se encontram no atravessamento ao poeta e àquela árvore do que observar, no esgarçar dos minutos que a ruminação do detalhe exige, o trabalho contínuo, diário, para que, mesmo em chão hostil, o grão de que se é germine em vida. Às negativas recebidas, o poeta responde com pérolas: produz beleza onde encontra sua mais total negação. Também a árvore, ao seu modo. Não tem pérolas, apenas algumas folhas escassas nem tão verdes, nem tão vistosas assim. Talvez ela tenha perdido todo ornamento, quiçá flores, no jogo das adaptações evolutivas necessárias para preservar a mais fundamental de todas as belezas: o acontecimento da vida. E o que pode haver de mais significativamente revolucionário do que isso, fazer medrar o belo onde só o feio faz morada; extrair um potente sim onde o não parece sem jeito; ser ainda vida, quando se pode apenas ser morte? Porque a vida – e eu não tenho a menor dúvida – a vida é um milagre. Não no sentido religioso da palavra, mas naquele que nos revela a improbabilidade dela acontecer e seguir acontecendo. Quase tudo nos ameaça esta frágil existência. No entanto, porque tudo começou com um sim, uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida, como nos conta Clarice, aqui estamos pensando alquimias para devir nossas fragilidades em potência de estar ainda aqui. Como o poeta em sua palavra-pérola, como a árvore em sua luta quieta e silenciosa permanecem ainda aqui.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

03/10/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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