ANOTAÇÕES PARA UM TEXTO - Meu nome é Johni

Meu nome é Johni
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ANOTAÇÕES PARA UM TEXTO

ANOTAÇÕES PARA UM TEXTO

Domingo, esse segundo domingo de maio, é dia das mães.

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Desde janeiro de 2015, quando mamãe faleceu em decorrência de uma doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), mal relacionado ao seu amor aos cigarros, eu tenho conferido pouca ou nenhuma atenção ao segundo domingo de maio. Em geral, tenho-o vivido em silêncio e quietude. Não é que a ausência de mamãe se faça maior na impossibilidade de comemorar essa data. Para quem vive ou já viveu o luto, é fácil reconhecer que esse processo não trata de nenhuma ausência. Antes, como eu escrevi em um poema recém-publicado, a experiência do luto envolve lidar com a presença daquilo o que já não está. O luto se refere a corpos presentes em formas e modalizações não-corpóreas – eis o seu paradoxo, a sua complexidade. Não é porque mamãe não está que o segundo domingo de maio se apresenta sempre como um dia difícil de atravessar, mas, pelo seu oposto: exatamente porque ela comparece, porque ela não se ausenta.

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Paulo Gustavo faleceu esta semana, mais precisamente na terça-feira, 4 de maio de 2021. Em um dia com outras 3.024 mortes por covid-19, Paulo Gustavo se tornou mais uma vítima dessa doença que nos tem feito experimentar luto sobre luto. Ironicamente [e a vida tem dessas tristes ironias], Paulo Gustavo morreu na semana em que se celebra o dia das mães. Paulo Gustavo deu vida a muitas personagens, mas, sem dúvida, a principal foi Dona Hermínia, uma carinhosa caricatura que o ator fazia de sua própria mãe, Déa Lúcia. Dona Hermínia era uma mãe. De algum modo, a força dessa personagem se conectava com o público brasileiro, que nela reconhecia traços de vizinhança em relação às próprias mães, vivas ou não. Não à toa, Minha mãe é uma peça 3, último filme em que Paulo Gustavo convocou a presença de Dona Hermínia, é a maior bilheteria do cinema nacional.

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[no modo de amar e querer proteger, nos ciúmes e na insegurança, no exagero e em certo drama, Dona Hermínia lembrava a minha mãe]

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Dona Hermínia, embora não possa ser contabilizada no número oficial de óbitos ocasionados pela covid-19, é também uma vida ceifada por esta doença. E, aqui, eu não consigo não pensar – por mais clichê ou efeito de melodrama que possa parecer ¬– que, entre as 3.024 outras mortes ocorridas ao longo das mesmas 24 horas em que se deu a passagem de Paulo Gustavo/Dona Hermínia, outras não sei quantas mães deixaram seus filhos e suas filhas órfãos e órfãs [e muitos outros filhos e muitas outras filhas deixaram suas mães ].

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[ao escrever o parágrafo acima, tentei buscar por uma palavra que, a exemplo de como “órfão” designa o filho que perdeu a mãe/o pai, designasse a mãe/o pai que perdeu a um filho ou uma filha. Não me ocorreu nenhuma e, por onde procurei, também não a encontrei. ao que tudo indica, esta palavra inexiste, pelo menos em língua portuguesa. talvez, sua inexistência demarque uma condição à qual a língua não consegue abarcar e traduzir, se não por uma apenas aproximação. a língua, reconheçamos, não dá conta de um real que só pode habitar, enquanto resto, o indizível]

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Porque a morte do ator Paulo Gustavo agencia esses dois lugares: o filho, ele próprio, que já não está para celebrar sua mãe, Déa Lúcia, no segundo domingo de maio; e a mãe, Dona Hermínia, que vivia no corpo e no talento do ator, que também já não está para ser celebrada por Marcelina, interpretada por Mariana Xavier, Juliano, vivido por Rodrigo Pandolfo, e Garib, Bruno Bebbianno, seus filhos. Assim como ele/ela, outras mães e outros filhos e outras filhas, ao longo deste mais de ano de pandemia, foram retiradxs da presença corpórea daquelx com quem/em quem viveu 9 meses mesmo antes de nascer. Resta apenas aquela outra modalidade de presença, uma a que não se toca, uma a que não se abraça.

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A esta altura, alguém pode comentar que estou hiperdimensionando as coisas, afinal, independentemente de estarmos ou não em um processo pandêmico, é sem número a quantidade de mães que deixam os seus filhos e as suas filhas órfãos e órfãs a cada ano, bem como, infelizmente, é de igual modo sem número a quantidade de filhos e de filhas cujas mortes impõem às mães uma condição de indizibilidade. Quem, por acaso, assim o fizer, desconsidera que estas 3.025 mortes ocorridas nas 24 horas que se deram entre a segunda-feira 3 de maio e a terça-feira 4 de maio, ou, tanto mais, os 412 mil óbitos que têm lugar nesse cronótopo Brasil 2020-2021, são fruto de uma causa específica em comum, contra a qual o governo federal pouco se mobilizou, optando por estratégias negacionistas e anticientíficas, com ampla minoração do problema, na mais absoluta contramão de qualquer bom senso ou postura minimamente razoável.

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[empequeno laboratório das coisas da vida, livro de poemas atravessado pela experimentação do luto que publiquei recentemente, “crônica do tempo presente”, segundo poema da edição, escrito em junho do ano passado, diz de meu espanto em relação à insensibilidade ante os 50.182 corpos sem vida que então já se acumulavam. menos de um ano depois, somos 412 mil. – isso: somos. ao receber o livro nas mãos e relê-lo, parei por alguns instantes medusado pela diferença de 361.818 mortes em pouco mais de dez meses, o que dá uma média de 36.181 óbitos/mês. “– e daí?/ continuarão perguntando/ como quem dá de ombros a uma/ simples e/ insignificante/ contabilidade de/ miudezas cotidianas// can’tyousee?/ it allmakesperfectsense// nenhum verso ou ensaio/ nenhuma dissertação/ ou tese/ deslinda/ tão completamente/ a este país/ quanto aquele altissonante/ – e daí?”.eu havia escrito em junho do ano passado. “– e daí?”, continuam ainda perguntando]

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Ironicamente, pois a vida tem dessas tristes ironias, Paulo Gustavo/Dona Hermínia [e outras 3.024 pessoas] faleceram no dia em que se deu início à importante CPI da Covid, no Brasil. Até então, os depoimentos dos ex-ministros da saúde Luiz HenriqueMandetta e Nelson Teich, ambos vinculados à presidência de Jair Messias Bolsonaro, têm lançado luz sobre a condução precária [para dizer o mínimo] do governo federal no tocante ao combate à pandemia no Brasil. A insistência em medicamentos ineficazes, supostamente milagrosos, no tratamento à covidao invés de uma aposta no desenvolvimento de uma vacina; a desvalorização dos esforços nacionais [apesar de tudo] e internacionais de pesquisa para a criação de imunizantes; a defesa de uma “imunidade de rebanho”, que nunca se comprovou de fato; a recusa peremptória às políticas de isolamento social; as aglomerações promovidas; a inoperância diante de uma iminente crise do sistema de saúde ocasionada pela falta de respiradores; a incompetência para gerir a logística de produção, compra e a distribuição de vacinas; a guerra declarada contra os estados não alinhados ao governo federal e o pouco caso diante das mortes acumuladas, além de atualizar dolorosamente aquele “– e daí?”, colocam em cena a imagem de um governo que não trabalha pela vida, mas em função de mais e mais mortes.

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Domingo, esse segundo domingo de maio, é dia das mães. Para muitas mães, a presença das filhas e dos filhos perdidas e perdidos ao longo desse pouco mais de ano pandêmico não se presentificará em um corpo passível de ser abraçado. Para muitas filhas, para muitos filhos, a presença materna, do mesmo modo, não poderá ser beijada. Déa Lúcia não terá Paulo Gustavo. Marcelina, Juliano e Garib não terão Dona Hermínia. A celebração se converterá em luto: algumas cadeiras em nossas mesas estarão carregadas apenas de vazio [e o vazio, há quem o saiba, o vazio pesa]. Precisamos viver esse luto em sua dimensão coletiva, naquilo que nos irmana, que nos aproxima. Talvez, assim, a exemplo do caso argentino das Mães da Praça de Maio, reencontremos no outro uma força que nos dimensione para uma perlaboração do luto que seja uma afirmação potente do direito à vida, uma poderosa confrontação de toda e qualquer política de morte, pois ela, a morte, já grassa por demais ao nosso redor: é preciso não aceitar que seus nefastos cavaleiros ampliem ainda mais o seu domínio.

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Daqui, de meu sétimo segundo domingo de maio em luto, ainda que isso seja pouco, muito pouco, me solidarizo com o luto de cada mãe que não terá o abraço de sua filha ou de seu filho e com o luto de cada filha, ou filho, que não terá o abraço de sua mãe.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem:  Rodrigo Pandolfo, Paulo Gustavo e Mariana Xavier são os protagonistas da comédia ‘Minha mãe é uma peça’ — Foto: Divulgação

08/05/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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