ALGUNS APONTAMENTOS A PROPÓSITO DO ABANDONO VACINAL - Meu nome é Johni

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ALGUNS APONTAMENTOS A PROPÓSITO DO ABANDONO VACINAL

ALGUNS APONTAMENTOS A PROPÓSITO DO ABANDONO VACINAL

Acabo de ler a notícia, publicada em A Tarde, de que mais de 500 mil brasileiros ainda não retornaram para receber a segunda dose da vacina para a covid-19. A julgar pelo fato de terem recebido a primeira, seria incorreto pressupor um alto índice de antivax entre essas pessoas – esse absurdo movimento tem crescido, o que vem resultando o ressurgimento de doenças consideradas já erradicadas, como a poliomielite, no entanto, não seria coerente, segundo a sua lógica, tomar sequer a primeira dose.  Logo, uma pergunta se impõe: se, de fato, há um desejo generalizado para que ultrapassemos o mais rápido essa condição de insegurança e medo na qual nos encontramos, uma vontade de que possamos voltar às ruas e aos abraços de quem amamos, por que meio milhão de brasileiros não retornaram para o necessário complemento do processo de vacinação, uma vez que apenas a primeira dose é insuficiente para gerar proteção?

            A primeira resposta, e mais óbvia, gira em torno da desinformação. É possível essas mais de quinhentas mil pessoas não saibam da necessidade de uma segunda dose? Parece-me um pouco forçada ou ingênua demais, essa conclusão. Primeiro porque, no processo de vacinação, não apenas se informa da necessidade da segunda dose como, também, marca-se uma data no cartão de vacinação. Em paralelo, os meios de comunicação têm realizado um bom trabalho no que se refere à cobertura da covid-19 no Brasil, demonstrando o perigo que ela representa e como é absolutamente necessário cumprir-se o protocolo em duas doses para que a vacinação alcance o seu resultado máximo de eficácia.Logo, não me parece ser este o caminho.

            A segunda resposta, a qual me parece ainda insuficiente mas um pouco mais correta, diz da própria irresponsabilidade com que o brasileiro – sobretudo, o homem – cuida de seu próprio corpo, de sua saúde – saúde em sentido amplo, como a define a OMS: “completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. É conhecido o fato de que boa parte da população brasileira não dá a devida atenção à sua saúde, sobretudo física e mental, fazendo vistas grossas a qualquer prescrição preventiva e recorrendo à medicina apenas quando a doença já está instalada. Há várias razões para tal comportamento: desde questões de ordem financeira – com o sistema único de saúde sucateado e incapaz de lidar adequadamente com o volume diário de corpos adoecidos, os preços proibitivos de tratamentos particulares acabam afastando a parcela mais pobre da população – ao completo desleixo em relação ao cuidado de si, que ainda vige na mentalidade de muitos brasileiros. “Só tem doença quem procura saber”, é uma frase volta e meia repetida – às vezes, como brincadeira, mas, em terra onde se brinca assim, é sempre necessário acender o sinal de alerta.

            Talvez – e esta é apenas uma especulação – correlacionemos demais a ideia de medicina à concretude ou ameaça de uma doença ao invés de o fazê-lo, como deveria ser, em relação à promoção de uma saúde – a própria instituição médica talvez tenha alguma culpa nisso. Como consequência direta desse ponto, a ausência de uma sintomatologia mais explícita é, em geral, entendida enquanto gozo da saúde, o que, portanto, não demandaria a necessidade de consultas, exames e uma avaliação profissional. Em paralelo, há de se considerar o fato de que a sombra de uma doença gera uma espécie de angústia, à qual muitas pessoas respondem com um movimento de fuga, em lugar de ir ao seu encontro – movimento psíquico primário, afastar-se da presença do que nos amedronta, ainda que essa fuga seja um processo meramente ilusório. Por último, a doença recoloca em cena as fragilidades das quais o nosso corpo é constituído. E, nós, brasileiros, somos assediados por um discurso constante de negação de nossas fragilidades, uma vez que somos “duros”, “resistentes”, “resilientes”, “fortes”: achamos que damos conta de tudo, sempre. Mal sabemos que a ideia de sermos “fortalezas inabaláveis” é, em si, uma doença. E grave. Em todo caso, todo esse cenário concorreria para um certo sentimento de rejeição aos cuidados médicos, mesmo em uma situação de calamidade tão tensa como esta que estamos vivendo.

            Uma terceira possibilidade de resposta gira em torno do descrédito que o pensamento sistemático e científico tem no Brasil. O nosso senso comum, já nos disse o sociólogo Jessé Souza, é orientado pela negação dos conflitos. Ou seja, há uma tendência hegemônica, que nos compõe como nação, em rejeitar processos que escancarem as nossas diversas fraturas, as nossas questões, preferindo sempre mantê-las sob o disfarce de acontecimentos episódicos. Não é o caso de entrar aqui em como essa característica nossa age como uma forma de justificação e manutenção das desigualdades que estruturam a sociedade brasileira – fato que o Jessé desenvolve e explica muito bem. Mas, ressaltar o ponto de que essa negação do conflito implica, como uma consequência direta e lógica, em uma atitude refratária às instituições acadêmicas e de pesquisa, ao pensamento universitário/científico, através do qual se ultrapassa o conjunto de referências já estabelecidas como “naturais” pelo senso comum. Eu já disse em outras ocasiões, e repito: grassa, no Brasil, um orgulhoaberrante – o da ignorância. (Por ignorância, eu entendo não a ausência de estudo e de um saber, mas a negação ao estudo e ao saber).

As universidades e instituições de pesquisa têm evidentemente responsabilidade no tocante a este cenário, uma vez que sempre foram um território das elites, portanto afastadas da imensa maioria da população brasileira, e dotadas de uma linguagem pouco acessível aos não-iniciados. Há um espaço em vazio entre as universidades e instituições de pesquisa e a população brasileira não vinculada a estes espaços que elas, durante muito tempo, não só não quiseram vencer como fizeram questão de preservar, garantindo assim uma espécie de autoridade inquestionável, um lugar de poder. Em contrapartida, como um movimento em refluxo quase previsível, a resposta da população brasileira a estas mesmas instituições gira no sentido da deslegitimação de seu poder sobre ela.

            A rejeição ao discurso oriundo de um estudo sistemático/científico, portanto, seria orientada pela própria negação de legitimidade relacionada ao processo de estudo e aos locais onde se processa esse estudo. No Brasil, onde se vive uma lógica de mercado já arraigada nos corpos das pessoas, tornadas elas próprias produtos, a universidade é menos desejada enquanto espaço de produção de pesquisa do que como um instrumento de preparação e inserção no mercado de trabalho. Mesmo entre estudantes universitários, há certa dificuldade de reconhecimento do tripé básico em que se assenta o fazer das universidades: ensino/pesquisa/extensão. Todos os três vértices desse triângulo são esvaziados na mentalidade média dos brasileiros, uma vez que resumidos apenas a um único fim: a possibilidade de um (bom?) salário no pós-universidade. Ou seja, mesmo que seja generalizado, entre a população brasileira, um desejo de frequentar o espaço universitário, este desejo não é originado a partir de uma valorização do processo de estudo, de uma produção do saber, mas pela perspectiva de ascensão social e econômica.

            Nesse sentido, o discurso produzido desde as universidades e instituições de pesquisa têm pouca, muito pouca mesmo, importância no debate público no Brasil. O lugar de prestígio que ele goza é quase restrito ao seu âmbito interno, encontrando muita resistência do lado de fora dos muros acadêmicos.

            Há outros fatores que devem ser considerados em relação a este déficit no retorno para a segunda dose, sobretudo a disputa política que envolve o processo de vacinação e a danosa irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro, que, em muitos momentos, diminuiu a importância dos imunizantes e o perigo representado por essa doença. Ou mesmo o fato de certas notícias, que traziam o fato trágico da morte de pessoas que já haviam tomado a segunda dose, como foi o caso do cantor Agnaldo Timóteo, promoverem certa confusão ao focarem, em suas manchetes, no óbito mesmo após completado o processo de imunização em duas etapas. Sabemos que boa parte da população brasileira não lê o corpo integral da notícia, acessando apenas as manchetes. Assim, ao ler que algumas pessoas contraíram a doença e faleceram mesmo tendo tomado as duas doses, e ignorando o fato de que elas provavelmente já estavam contaminadas quando receberam o reforço, infere-se que a segunda dose tem pouca ou nenhuma eficácia. Uma possível consequência a esse cenário é o abandono vacinal.

            Como visto, não há uma conclusão simples, que aponte para uma única causa. Pelo contrário, há diversos fatores – históricos, sociais, culturais, políticos – que convergem para a situação caótica em que nos encontramos neste abril de 2021. O avanço, ainda que lento, da vacinação no Brasil vinha servindo como um importante alento ao luto sobre luto que temos experimentado. No entanto, notícias em torno do abandono vacinal exigem que permaneçamos em atenção. E, sobretudo, que entendamos: não se trata apenas de uma irresponsabilidade cujas consequências se apliquem apenas ao âmbito individual. Trata-se de uma irresponsabilidade que se estende ao corpo coletivo. Nesse caso, a vacinação não é apenas um cuidado de si, mas também, e principalmente, um cuidado com o outro.

            (p.s: o grande problema é que, se, no brasil, o cuidado de si já é algo não enraizado no dia-a-dia da população, o cuidado com o outro sequer se apresenta como uma agenda conhecida)

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Foto: Delmiro Júnior/Agência O Dia/Estadão Conteúdo (19.mar.2021)

11/04/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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