ALGUMAS QUESTÕES SOBRE AS LITERATURAS AFRICANAS NO BRASIL - Meu nome é Johni

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ALGUMAS QUESTÕES SOBRE AS LITERATURAS AFRICANAS NO BRASIL

ALGUMAS QUESTÕES SOBRE AS LITERATURAS AFRICANAS NO BRASIL

Há um problema central no modo como os estudos das literaturas africanas vêm sendo realizados em grande parte das universidades brasileiras – e também nas escolas de ensino médio, quando estas as abordam: sua obrigatória vinculação à lusofonia. Isto é, apenas os textos literários escritos em português compõem o conjunto de referências acessado pelxs estudantes. Disto, decorrem três graves consequências, a saber: 1. A redução do continente africano a 5 países: Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe – não raro, com enfoque ainda mais fechado nos dois primeiros –, territórios estes violentamente colonizados por Portugal; 2. A exclusão das formas literárias produzidas a partir das línguas nativas destes territórios (umbundu, kimbundo, kicongo, côkwe, nganguela, kwanyama, entre outras, apenas em Angola; emakhuwa, xichangana e elomwe, entre outras, em Moçambique; crioulo, balanta, mankanya, pulaar, entre outras, em Guiné-Bissau; as línguas crioulas de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, além daquelas de grupos étnicos minoritários destes referidos locais) e 3. A perigosa atualização da imagem de um império português. Em seguida, procurarei problematizar brevemente estes três tópicos.

  1. Não é raro, infelizmente, que inclusive estudantes universitárixs se refiram à África como um país, homogeneizando-o. Lembro-me de uma entrevista da pesquisadora são tomense Inocência Mata – devo dizer, acho esse nome de uma verdade absoluta – afirmando que, se houvesse um acidente aéreo, a mídia internacional cobriria a tragédia ressaltando as nacionalidades de cada europeu falecido, mas, em contraste, diria: “e x africanos”. Da mesma forma, lembro que, em 2010, a Copa do Mundo de Futebol, sediada pela primeira vez em um país africano, a África do Sul, deixou de ser veiculada – ao menos no Brasil – como Copa da África do Sul para ser transmitida como Copa da África. Estas reduções – como, de resto, qualquer redução – são extremamente perigosas. Elas remontam à engrenagem discursiva erguida como sustentáculo do sistema colonial, uma vez que racializam um continente em torno de uma única identidade possível, a qual fora moldada pelas metrópoles como infra-humana. Tais reduções operam hoje não mais como artifícios de legitimação do colonialismo, mas como índices da colonialidade do poder e do saber. Isto é, como uma ordenação geopolítica do poder e do conhecimento gerida pelas antigas metrópoles coloniais, cujas línguas vernáculas – o português, o inglês, o italiano, o francês, o alemão e o espanhol – emolduram uma dada representação de mundo, que não é outra coisa senão a permanência das epistémescoloniais. No caso brasileiro, território colonizado por Portugal, interessa manter a hegemonia da língua portuguesa como única possibilidade de dizer o mundo – pouco importando se há vínculos existenciais profundos entre determinadas regiões do Brasil, o Recôncavo Baiano, por exemplo, e territórios africanos além daqueles abrangidos pelo grupo dos PALOP – países africanos de língua oficial portuguesa –, como o território ioruba. Disto, não é difícil derivar a conclusão que, aquilo está em jogo no atual tratamento conferido às literaturas africanas no Brasil, não é a África ou as reterritoralizações africanas que têm lugar em espaços diaspóricos, mas, sobretudo, a língua portuguesa.
  2. Isto nos leva ao segundo ponto. É claro que é possível argumentar o fato de que o trabalho com textos literários inicialmente escritos em língua portuguesa facilita a circulação de autorxsafricanxs no Brasil, uma vez que elimina a processo de tradução interlingual. No entanto, isso não nos impede de perguntar: por sob este argumento de inclusão, o que se encontra excluído? O que fica de fora? Não é o caso de afirmar que xsautorxs que circulam em nosso território nacional são menos africanxs do que aquelxs que não conhecemos, ou que sejam vozes menos legítimas de África. Seria algo contraproducente seguir por esse caminho, além de um óbvio absurdo. A questão é outra: a ênfase na língua portuguesa intensifica a capa de silenciamento e invisibilidade que já recobre as diversas línguas nativas existentes no continente africano, o que implica também silenciar e invisibilizar seus modos particulares de simbolizar e dizer o mundo em prol daqueles possíveis e já elaborados nas línguas coloniais. Com isto, não estou afirmando que a literatura de Pepetela ou de Mia Couto, para ficar nos nomes contemporâneos mais conhecidos, faz o jogo da colonialidade do ser, do poder e do saber. Estou afirmando que a redução do campo de conhecimento, em torno das literaturas africanas, à replicação de uma hegemonia linguística portuguesa, isto sim, faz o jogo da colonialidade. Primeiro, porque exclui muito mais do que inclui – basta verificar o fato de o cânone africano instituído no Brasil ser formado majoritariamente por homens brancos que, de alguma forma, carregam consigo heranças portuguesas (novamente: não se trata de deslegitimar tais autores, mas de apontar um mecanismo institucional, operador da colonialidade, que privilegia um grupo seleto de escritores, aqui deliberadamente grafado no masculino, em detrimento de outros). Segundo, pelo fato de esta ser uma estratégia de recolocação do império português na contemporaneidade.
  3. E aqui chegamos ao terceiro ponto. Fernando Pessoa, poeta português do início do século XX, profetizou em Mensagem – espécie de poema épico para suturar a ferida narcísica lusitana em torno da queda vertiginosa sofrida por Portugal – que o quinto império se concretizaria por via linguística. Neste sentido, o domínio português sobre o mundo não se traduziria em relações de dominação política ou territorial, mas pela hegemonia imperial da língua: a lusofonia. Ora, o que se tem majoritariamente feito no Brasil, em termos de trabalho com as literaturas africanas, se não colocar em relevo a lusofonia – ainda que esta não seja tematizada como objeto de estudo ou que artigos, dissertações, teses e livros não assumam um tom explicitamente apologético a ela? O fato é que, uma vez que ela opera como elemento de mediação do nosso contato com textualidades africanas, a lusofonia faz o papel de curador de nossas leituras, selecionando a que se tem acesso e relegando um contingente imensamente maior ao desconhecimento público. E, cabe perguntar, o que é este filtro se não um lugar de poder, uma instância de legitimação?

Um fator agravante, o qual quero apenas introduzir: muito do material teórico e crítico acionado para ler escritorxesafricanxs é ou de autoria brasileira ou de autoria portuguesa ou, quando muito, de pesquisadorxsafricanxs que escrevem a partir de seus lugares na academia lusitana. Apenas para ser enfático, mais uma vez: não se trata de deslegitimar tais trabalhos, muitos dos quais são de extrema qualidade e arguto olhar crítico, mas de propor uma problematização a respeito da ubíqua presença de Portugal – seja a partir da língua portuguesa, de pensadorxsportuguesxs ou das universidades lusitanas – como um recorrente centro instituinte do saber válido sobre África. Colonialidade, enfim.

As literaturas africanas precisam ter um lugar seguro nas universidades e escolas brasileiras. Lê-las e estudá-las a fundo podem ser atitudes importantes para o necessário movimento decolonial de nossas epistémes. No entanto, para isso, é preciso que o próprio ato de acessá-las se constitua como combate consciente à colonialidade que, atualmente, o administra. Isto passa, entre outras coisas, pela politização da língua e problematização da lusofonia como critério. Afinal, a África, mesmo os territórios terrivelmente explorados por Portugal, não é lusófona.

A LUTA CONTINUA, JOHNI VIVE!

Imagem: internet (uneafrobrasil.org/)

22/07/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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