A PROPÓSITO DE UM JOGO - Meu nome é Johni

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A PROPÓSITO DE UM JOGO

A PROPÓSITO DE UM JOGO

Nasci no início nos anos 1980, mais precisamente em 1983, pouco depois da crise instaurada pela Atari, empresa estadunidense de jogos eletrônicos, que quase levou à quebra toda a indústria de videogames – salva, em 1985, pela Nintendo, ou, para ser mais justo, pelo lançamento de Super Mario Bros., cujo personagem, um encanador barrigudo e bigodudo, popularizou de vez o mercado de consoles domésticos e o elevou a outro patamar.

            Menino de classe média-média, minha infância e adolescência aconteceram, portanto, em meio à época de ouro dos jogos eletrônicos: em cada esquina, fliperamas e locadoras de fitas para todos os consoles possíveis. Não raro, o dinheiro da merenda ou o do transporte se transformava em fichas rapidamente devoradas pelas máquinas insaciáveis dos flipersou pelos aluguéis de fitas e suas multas pela não devolução no prazo combinado – o fim de semana era sempre muito curto.

            Naquele tempo, a grande maioria dos jogos se baseava em enredos bastante simplistas, que pouco ou nada fugia dos mesmos clichês: a mocinha raptada pelo bandido que precisa ser salva pelo herói, ou, o herói que precisa salvar a cidade, o país, o mundo de alguma ameaça estrangeira ou alienígena que o ameaçava unicamente em virtude de uma maldade intrínseca. Tudo se resumia a apenas algumas linhas que supostamente justificassem a ação frenética. Não havia um investimento literário na grande maioria dos jogos, de maneira que estes se reduziam ao nível mais simplório do entretenimento, aquele que nos ganha pela produção (virtual?) de adrenalina frente à possibilidade de sair vitorioso ou derrotado de uma partida de futebol, de uma corrida de carros ou de uma briga de rua – todas virtuais. Era uma poderosa Medusa.

            O amadurecimento do público de jogos, que, se na década de 1980 era composto majoritariamente de jovens e crianças, no decênio seguinte já se organizava em torno de adolescentes e recém-adultos, acarretou também o amadurecimento da indústria. Na prática, isto significou jogos que apresentavam um investimento significativamente maior no desenvolvimento de personagens e de enredos, buscando uma aproximação com o texto literário no que tange aos diversos modos de produção de afetos sobre quem o acessa. A partir de então, e sem deixar de lado a dimensão de entretenimento, alguns jogos buscaram se constituir como uma experiência ético-estética, ou seja, procuraram elaborar, em linguagem artística, agendas importantes do mundo concreto em que vivemos.

            É neste plano que se coloca Detroit: becomehuman, roteirizado por David Cage e Adam Willians e publicado pela Quantic Dream em 2018 para Playstation 4 e computadores. Situado no entre-lugar no que concerne à experiência proporcionada pelos jogos – a de controlar a personagem, o que possibilita a imersão na história em primeira pessoa, ainda que o jogo seja executado em terceira – e a do cinema – assistir ao outro, que vive o enredo apresentado –,Detroit aposta todas as suas fichas na criação de uma empatia entre o público e suas três personagens jogáveis – Marcus, Kara e Connor. À exemplo de um filme intimista ou de um livro introspectivo, para que o jogo funcione é imprescindível que haja uma confluência entre quem joga e as personagens jogáveis, o que significa partilhar das experiências desenvolvidas nas três diferentes linhas narrativas, de início paralelas, que convergem tensamente no arco final de Detroit.

            De maneira bem resumida, pode-se dizer que Detroit: becomehuman elabora uma discussão acerca do direito à vida, aqui entendida não como a mecânica de batimentos cardíacos ou contração e expansão dos pulmões – e longe também de uma retórica conservadora que toma a expressão “direito à vida” como lema para campanhas anti-aborto. Antes, vida como liberdade para viver. Isto é, exercício do desejo e da autonomia sobre si.

            O jogo se passa em um ambiente futurista, a cidade de Detroit, nos Estados Unidos, no ano de 2038, quando a tecnologia para a confecção de androides evoluiu de tal maneira que, fora a existência de uma pequena lâmpada de led situada na têmpora direita de cada androide, eles são praticamente indistinguíveis dos seres humanos. Estão nas ruas e em cada casa que tenha condição para pagar pela aquisição de um exemplar. Exercem as funções mais subalternizantes, aquelas às quais os seres humanos não agregam valor simbólico: são limpadorxs de ruas, empregadxsdomésticxs, atendentes de lojas, etc. Como o investimento em um androide compensa em muito pouco tempo a substituição de um trabalhador humano assalariado, uma onda de desemprego em massa assola o mundo – o que estabelece a tensão inicial do jogo, marcada por um viés econômico: desempregadxs organizam-se em grupos para protestar contra a existência dos androides.

            A concepção humana acerca dos androides os significa como mercadorias, objetos, coisas. Seres desprovidos de dinâmica desejante ou afetiva. No entanto, uma falha sistêmica de programação passa a ocorrer em alguns desses androides quando submetidos a situações mobilizadoras de um alto grau de stress. É o que vimos acontecer no momento em que Kara se vê confrontada com uma situação de abuso doméstico, na qual um pai afundado em luto, desempregado e viciado em drogas, violenta a própria filha, Alice. Neste momento, nós, que antes havíamos conduzido Kara a cumprir as ordens dadas pelo seu patrão/dono, somos posicionadxs diante de uma escolha moral: quebrar a programação, tornando-se divergente e intercedendo pela vida de Alice, ou resignar-se em face das ordens recebidas e permanecer em passividade diante da violência contra a criança. A depender da escolha feita por quem assume o controle, o jogo pode se ramificar em diversas situações diferentes, cada uma com suas consequências.

            A violência é uma presença constante no dia-a-dia dos androides. Seja em função dos maus-tratos que recebem ou da situação de apartheid em que se encontram – há separações em espaços públicos, com lugares proibidos à circulação destes seres –, os androides são efetivamente expostos a experiências degradantes. No entanto, como em um processo de desenvolvimento de uma consciência política, eles se percebem como seres vivos submetidos a condições humilhantes, o que gera os sentimentos de indignação e revolta. Sintomaticamente chamados de “divergentes”, ou seja, seres que se desviam do padrão estabelecido, estes androides são caçadxs, apagadxs, destruídxs. Xs que escapam, se organizam em movimento de luta por direitos – movimento este do qual Marcus vem a ser um líder.

            Gostaria de falar mais sobre o jogo, discutindo pormenorizadamente as trajetórias dxs três protagonistas. Mas, qualquer avanço além daqui pode ocasionar em spoiler, o que prejudicaria em muito a experiência que Detroit: becomehuman procura proporcionar, uma vez que bastante baseada no impacto e na mobilização do mais antigo atributo de qualquer ser vivo, o instinto de sobrevivência, para, por via indireta, atingir outro, posteriormente desenvolvido, o senso moral que funda a ideia de justiça.

            É neste sentido que é adequado falar de Detroit: becomehuman aqui, neste blog dedicado a discussões sobre sociodiversidade. Este jogo se apresenta como uma grande alegoria acerca da dificuldade humana – tanto mais do mundo branco/ocidental – em lidar com as diferenças étnicas, sexuais, de gênero e de classe, bem como das graves consequências que políticas baseadas na violência já acarretaram: apartheids, genocídios, guerras. Jogar Detroit: becomehuman é uma experiência singular, porque, enquanto peça de entretenimento, faz do entretenimento um lugar de reflexão e de empatia com o que não é espelho.

            Ao longo de minha vida, escutei inúmeras vezes que os jogos eletrônicos tinham uma influência maléfica sobre os jovens. Evidentemente, sempre discordei. Continuo discordando. Pelo contrário, eles podem ser forças interessantes aliadas à educação. Não me refiro aos jogos educativos, que assumem um caráter deliberadamente pedagógico, portanto, configurando-se como terrivelmente chatos: não encantam, não fascinam. Mas, a jogos como Detroit: becomehuman que, inteligentemente, colocam a pessoa em dilemas morais, organizando um trânsito em direção ao outro. Afinal, não são raros os relatos de jogadorxs que se pegaram emocionadxs junto a um Marcus, acuado diante de tantas armas apontadas contra ele, e, ainda assim, cantando: Fightonjust a littlewhilelonger/ Everythingwillbeallright.

            Fica a recomendação.

            p.s. enquanto escrevia esse texto, li um artigo de ruy castro publicado dia 17 de fevereiro na folha de são paulo. “de assustar” é o título do texto. coincidentemente, um texto que poderia estar inserido no conjunto de matérias que podemos ler ao jogar detroit: becomehuman como uma forma de ampliar a percepção geral do mundo estabelecido no jogo. o articulista se espanta diante do fato de um robô ter regido a ópera beleza assustadora, experimentação estética promovida por keiichiroshibuya, artista japonês de vanguarda. pararuy castro, a arte, como lugar privilegiado do sensível, não é compatível com o mundo automatizado dos androides. a coincidência é engraçada. emdetroit há uma cena em que algo muito parecido é discutido, mas pelo viés da pintura. e se trata de uma aula sobre o que é arte. talvez ruy castro devesse dar uma chance a esse jogo.    

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foto: pirelli.com

18/02/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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