A PROPÓSITO DE O DIA DE JERUSA - Meu nome é Johni

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A PROPÓSITO DE O DIA DE JERUSA

A PROPÓSITO DE O DIA DE JERUSA

Tenho gosto por curtas-metragens. A escala micro, com a qual x cineasta trabalha quando não pretende dilatar o tempo da ação, seduz a minha atenção. Condensado, o plano narrativo precisa do detalhe para compor o background da história: uma ou outra palavra dita aqui ou ali, quase como um escape, um ou outro meneio de cabeça ou objeto figurativo a compor a cena. Em um curta – em um bom curta –, tudo é estrategicamente pensado para dizer o que não cabe no corte final do filme.
Ao longo da última semana, mobilizei um curta-metragem em duas turmas minhas que, apesar de diferentes, compartilham o mesmo conteúdo. A ideia era que discutíssemos interseccionalidades, isto é, os possíveis múltiplos atravessamentos constituintes de um corpo – e das violências a que este mesmo corpo é cotidianamente submetido. O fato de habitarmos uma sociedade baseada no esquema hierárquico centro-periferia implica que tenhamos lugares de hegemonia, os quais gozam de privilégios diversos, entre os quais o de não serem considerados a priori uma ameaça ao Estado, e subalternizados, nos quais a vida se desdobra sob as faces de um perigo iminente e de um assédio constante. Os primeiros se organizam em torno da centralidade de um corpo que se define enquanto branco, masculino cis-gênero, hétero, cristão e capitalista-burguês – o qual é palco de processos de subjetivação a partir dos discursos da branquitude, do patriarcado cis-gênero, da heteronormatividade, de um evangelismo universal e salvacionista, além do capital. Já os segundos, aqueles lugares subalternizados, se constituem pelos corpos destoantes – seja pela própria imagem com a qual se apresentam, pelo desejo com o qual ardem seus corpos ou por não aderirem e, consequentemente, buscarem não reproduzir tais ideologias.
O filme escolhido para mobilizar o debate foi O dia de Jerusa, da cineasta Viviane Ferreira. Lançado em 2014, o curta-metragem oferece ao público imagens, diálogos e sugestões que perduram para além dos pouco menos de 20 minutos em que se desenrola o encontro entre Jerusa, uma senhora negra que então completa 77 anos, e Sílvia, uma jovem negra que trabalha para uma empresa de pesquisas e precisa visitar estabelecimentos e casas para o levantamento de dados.
O dia de Jerusa é um filme de delicadezas e violências. Se, por um lado, os minutos finais do curta, quando se consolida a empatia entre as personagens, são de uma comovente ternura – e nunca é demais tecer elogios a esta grande atriz que é Léa Garcia, que dá vida à personagem Jerusa –, por outro, em cada segundo do filme – desde a abertura, com o poema “minha mãe”, de Luiz Gama, até o fim, com Jerusa limpando o tapete à porta de casa ao som da música “Justo”, de Marquinho Dikuã – observa-se o trabalho esmerado com as diversas violências a que são submetidos corpos femininos negros pobres. O cruzamento raça+gênero+classe está, portanto, na base de O dia de Jerusa, sendo não apenas um apêndice exibicionista, mas, antes, um elemento constitutivo da experiência das personagens – com o que, ressalte-se, a discussão ganha força. A estes três já referidos elementos, é necessário cruzar um quarto – o fator geracional. Jerusa é uma idosa e, como tantxsoutrxsidosxs deste nosso ocidente seduzido por uma juventude passageira, encontra-se solitária.
Da explicitude dos assédios sofridos por Sílvia – interpretada por Débora Marçal – no ambiente e exercício de seu trabalho, quando é destratada por sua chefe, colocando em cena as clivagens de classe, e por um dono de bar, o qual se sente autorizado, pela lógica patriarcal que lê o corpo feminino sob a diretriz do desejo masculino, a se aproveitar da presença da jovem para importuná-la sexualmente, à delicadeza com que Jerusa imprime uma e outra frase reveladora do que viveu – um mundo se desvela naquela frase sua sobre a aposentadoria! –, o curta-metragem remexe em importantes feridas abertas deste Brasil em que vivemos.
O dia de Jerusa é um filme político. Não à imagem daqueles que reduzem política a uma verborragia sem dúvida relevante do ponto de vista social, mas esteticamente enfadonha. A dimensão política deste curta se apresenta enquanto uma aderência orgânica à vida. Em nenhum momento nós somos levadxs a ter a impressão de qualquer coisa fora do lugar. Pelo contrário: reconhecemos naquelas vidas, vidas outras que conhecemos; reconhecemos naqueles dramas, dramas outros que conhecemos (ou mesmo que vivemos, a depender dos corpos em que habitamos). E é nesta afecção, neste modo de nos atravessar traduzindo o erro deste mundo em que estamos imersxs, que O dia de Jerusa nos comunica o seu discurso político de não alinhamento aos padrões normativos instituídos, nos convidando a repensá-los e a pautar uma agenda outra, produtora de uma dinâmica social em que os corpos femininos negros, jovens e idosos, não sejam mais vilipendiados em seus direitos básicos, os quais visam assegurar uma vida digna.
Fica o convite para que todxs que acompanham este blog possam assistir a O dia de Jerusa. O curta se encontra disponível no canal da Odun Formação & Produção, produtora responsável pelo filme, no Youtube.

Segue o link: https://www.youtube.com/watch?v=0RY3pkRcPiQ&t=4s.

Bom filme a todxs.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem: Internet

11/10/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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