Do porquê não escrevi o texto que planejei, ou, ainda 2019 - Meu nome é Johni

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Do porquê não escrevi o texto que planejei, ou, ainda 2019

Do porquê não escrevi o texto que planejei, ou, ainda 2019


Para o primeiro texto deste novo ano, 2020, eu havia anteriormente planejado um pequeno dicionário. Ao invés de catalogar e descrever os sentidos e usos de cada palavra da língua portuguesa, eu me proporia a pensar um leque reduzido de termos, justamente aqueles os quais eu desejava não ouvir ou falar ao longo dos 366 dias deste ano bissexto. Pequeno dicionário de palavras que  quero ausentes, seria o título. Não era o caso de esquecer a existência de tais vocábulos ou de fazer vistas grossas quando o dia-a-dia os convocasse, amenizando-o hipocritamente numa semântica pouca adequada. Longe disso. Antes, à exemplo de uma criança que escreve ao Papai Noel, o tom seria o de um pedido a uma entidade inexistente: que 2020 viesse sem requisitar de nossas bocas o uso daquelas palavras. 2020, no entanto, começou abortando de imediato aquela ideia. Duas das palavras planejadas para dicionário são, justamente, as que mais tenho ouvido e falado ao longo destes primeiros dias: guerra e censura. A crise Estados Unidos-Irã tem solicitado continuamente a primeira, enquanto a segunda atinge os comediantes do grupo Porta dos fundos, cujo especial de Natal, disponibilizado via plataforma de streaming Netflix, foi retirado do ar por ordem judicial proferida pelo desembargador Benedicto Ultra Abicair, acatando o pedido da ultraconservadora Associação Católica Centro Dom Bosco de Fé e Cultura.
Embora no momento em que escrevo este texto o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, já tenha revertido a censura sobre o especial, colocando-o novamente à disposição do interesse do público, confesso que esta situação me posiciona muito mais em alerta do que a iminência de uma guerra Estados Unidos-Irã, cujos desdobramentos são imprevisíveis. Na verdade, o correto seria dizer: assusta-me mais o caso concreto da censura instituída do que a possiblidade de a guerra acontecer. Não por um descaso frente aos soldados que irão morrer, ou aos civis que, não portando armas e não acarretando perigo às tropas de um lado ou de outro, também perderão suas vidas. Toda guerra, mais que um drama, representa traumas. Não pela ausência de algum receio de que o conflito se estenda a outras nações, generalizando-se. Mas, pelo fato de que, se a escalada de uma tensão bélica entre os dois países não revela algo de fundamentalmente novo acerca do modus operandi dos Estados Unidos, cuja economia necessita da produção periódica de conflitos armados, sobretudo contra territórios ricos em petróleo, ou do Irã, cuja retórica religiosa se sustenta sobre a produção constante de inimigos a serem derrotados em guerras santas, a censura ao Porta dos fundos aponta, ao menos, para a intensificação de três elementos constitutivos desta guinada ultraconservadora em curso no Brasil, a saber:
Em se considerando que o Porta dos fundos produz sátiras religiosas como especiais de Natal desde o ano de 2013 sem nunca ter enfrentado tamanha reação em contrário – além da censura, houve também o atentado com coquetéis molotov à sede da produtora –, não é necessário muito esforço para se inferir que um dos motivos mais fortes de tais violências, senão o principal, reside na representação de Jesus como gay. Neste sentido, a repressão ao Porta dos fundos é semelhante, em suas motivações, à censura instituída pelo prefeito do Rio de Janeiro, Bispo Marcelo Crivella (PRB-RJ), à venda da HQ Vingadores: a cruzada das crianças por conter um beijo gay. Com efeito, a orientação sexual se configura como um dos tópicos mais tensos no que concerne à sociedade brasileira, cuja caracterização moral e religiosa cristã, sobretudo em suas versões neopentecostais, implica uma dificuldade extrema em lidar com a população LGBTQI+. Prova incontestável disso é o fato de que o Brasil registra uma morte por LGBTQfobia a cada 16 horas, isto é, pessoas que são assassinadas em decorrência unicamente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Em contraste, o Brasil é também o país que mais acessa sites pornográficos com conteúdo LGBT, sobretudo aqueles especializados em travestis – psicanálise simples: recalque e violência andam de mãos dadas. A novidade se encontra no processo de legitimação de tais violências, que vem sendo instituído junto a um congresso cada vez mais religioso e a uma presidência cujas declarações largamente homofóbicas não são raras. Isto, aliás, nos encaminha ao segundo ponto a ser destacado:
Insistir, no contexto atual de configuração das forças políticas do Brasil, que este é um país laico, sem minimamente colocar em suspeição esta frase, soa como ingenuidade ou mau-caratismo – mais para o segundo do que para o primeiro. Há alguns anos, poderia parecer um exagero suspeitar que o Brasil se encaminhava para uma espécie de teocracia cristã não assumida enquanto tal. Hoje, parece-me impossível ao menos não considerar a fundo esta perspectiva. Deputadxs estaduais e federais legislam com versões da Bíblia em mãos (suspeito, e não poderia deixar de mencionar, que a imensa maioria delxs sequer leu ou entendeu a mensagem de Cristo, afinal, muitos discursos pronunciados no púlpito das câmaras estaduais e federal são fundamentalmente não-cristãos). O próprio slogan político da presidência, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” põe a nu a pretensa perspectiva religiosa que lastreia o pensamento (sic) político daquelxs que hoje tomaram o Palácio do Planalto de assalto. É tal correlação de forças que autoriza um desembargador a se sobrepor à própria Constituição, cujo artigo 220, em seu segundo parágrafo, informa, sem margem para dúvidas: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
A censura ao Porta dos fundos representa um novo rasgo no texto da Constituição Federal, que vem sendo atacada aqui e ali periodicamente pelos grupos que hoje partilham de cadeiras em Brasília e salas na Esplanada dos Ministérios – o que vem a ser mais um sintoma, talvez o principal, da perigosa escalada do autoritarismo que a sociedade brasileira está vivenciando. Longe de ser um fato novo, o autoritarismo é indissociável da concepção do Brasil como sociedade. No entanto, nas décadas de 1990 e 2000, muito em função do trauma recente da ditadura militar, havia uma tendência cada vez maior de ampliação da democracia brasileira, o que seria feito mediante o empoderamento de grupos sociais historicamente subalternizados no país. Isto ruiu em face da retomada de um sujeito enunciador homem-cis-hétero-branco-cristão-militar-dono de terras, responsável por formular (ou seria recuperar?) um projeto de nação calcado na exclusão e no silenciamento, na violência e na censura – em algum lugar, ouço Gonzaguinha cantando “memória de um tempo/ onde lutar por seu direito/ é um defeito/ que mata”.
Ao que tudo indica, em se considerando os seus primeiros dez dias, 2020 não vai me deixar escrever o Pequeno dicionário das palavras que quero ausentes. Há qualquer coisa de podre espraiando-se no ar, e é o corpo de 2019 que se recusa a ir embora. Lembro daquela canção dos Engenheiros do Hawaii, “Anoiteceu em Porto Alegre”: e a certeza/ de que o último dia de dezembro/ é sempre igual/ ao primeiro de janeiro.‎

 

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

15/01/2020 | Fonte: Imagem da Internet | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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