
“A CIDADE REVISITADA”, UM CONTO DE CARLOS RIBEIRO
Esses dias eu estava relendo alguns textos aos quais não voltava há algum tempo. Entre eles, o conto “A cidade revisitada”, do escritor baiano Carlos Ribeiro. A narrativa se passa em 2018, quando este ano ainda era um distante futuro, e tem por cenário a capital baiana, Salvador. A história gira em torno de um “homem de óculos e de roupas surradas” que, aos 59 anos, retorna à capital baiana, terra natal, após uma década de ausência.
Em literatura, falamos sempre que há de se desconfiar do narrador. Quem nos conta uma história nunca é neutro diante dela. Mesmo o fato de ele focalizar e priorizar a personagem em detrimento de sua própria experiência não significa que se ausente no que tange à substância narrada. De um modo ou de outro, o narrador fala por meio das personagens. Isto porque, ainda que sua câmera enquadre x outrx, é ele, o narrador, quem produz o enquadramento em que xquer narrar.
Deste modo, o narrador de “A cidade revisitada” se movimenta em torno da personagem, ora se aproximando intimamente dela, a ponto de inscrever seus pensamentos e seus contidos sentimentos na narrativa, ora dela se afastando, abrindo o enquadramento ao máximo, de modo a inseri-la e quase dilui-la na paisagem citadina. Outras vezes, o narrador olha por cima dos ombros daquele “homem de óculos e de roupas surradas”, com o que busca o cenário com os olhos da personagem. O narrador nunca a perde de vista: seja em close-up ouem plano geral, é por meio da experiência da personagem que a narrativa se desdobra e que a cidade é “revisitada”.
Como nós, leitorxs, acompanhamos a narrativa pelo enquadramento e tom nela impressos pelo narrador, é inevitável que haja, em algum nível, uma identificação entre nós e a voz narrativa. Sem se saber devidamente convidadx, quem lê é transportadx para um avião a poucos instantes de pousar no Aeroporto Internacional de Salvador. É nesta paisagem que o narrador, escondido sob os nossos olhos, abre o conto, com a aeronave adentrando o espaço aéreo da capital baiana. Como se sentado próximo ao “homem de óculos e de roupas surradas”, o narrador consegue flagrá-lo sorrindo intimamente quando o comandante anuncia a proximidade do “aeroporto 2 de Julho”.
A abertura do conto funciona em duas direções: a primeira permite indiciar o teor francamente político desta narrativa quando devolve, ao aeroporto de Salvador, seu nome original, cuja substituição representou – e, infelizmente, ainda representa – uma violência desmedida contra o povo baiano. A segunda, por sua vez, possibilita situar a personagem em uma aproximação dupla, porque espacial e afetiva, em relação à cidade. Satisfeito ao ouvir a data histórica em lugar do nome de certo político desimportante, o “homem de óculos e de roupas surradas” revê a paisagem costeira da Bahia se avizinhando de sua janela.
Logo em seguida, o narrador situa a personagem dentro de um táxi, saindo do aeroporto em direção ao centro velho da cidade. Longo, o trajeto abre a possibilidade de visualização de vários cenários, os quais se sucedem na medida em que o carro avança, bem como conecta a parte nova de Salvador, identificada com os modelos contemporâneos de urbanização, àquela mais antiga, que remonta a séculos idos. O percurso, então, simboliza um retorno ao passado, o que quadra bem à situação, posto que a personagem encontrava-se fora da cidade havia dez anos. Assemelha-se, assim, a um movimento de re-identificação do “homem de óculos e de roupas surradas” com a Cidade da Bahia. O texto nos diz exatamente isso: “Pede ao motorista que vá devagar, que deixe o carro deslizar mansamente pelas ruas e avenidas, que o deixe recuperar o que é seu”.
A rigor, grande parte de “A cidade revisitada” é constituída da narração dos espaços pelos quais o táxi segue lentamente, levando consigo o olhar atento da personagem – e, sobre os ombros dela, o do narrador e também o nosso, leitorxs –, que revive suas experiências acerca de ruas e bairros da capital. Nesse sentido, o olhar encantado/assustado que a personagem lança sobre a paisagem citadina é seguido de suas memórias – a ambiguidade do pronome é proposital – e por reflexões, que são também aquelas formuladas pelo narrador.
Uma vez que eu já alertei aqui para o conteúdo francamente político desta narrativa, a expectativa é que o olhar da personagem sobre a cidade seja acompanhado de críticas e denúncias a respeito dos diversos e terríveis problemas enfrentados por Salvador. No entanto, as paisagens representadas destoam daquelas vivenciadas pelo povo soteropolitano na atualidade. O texto nos diz:
“Olha pela janela as imagens que parecem fazer parte de uma outra vida; o túnel de bambus, agora mais verde e encorpado; a avenida Dorival Caymmi, com sinalização e pavimentação surpreendentemente boas; os bairros de São Cristóvão, Nova Brasília, e Itapuã […] contam com um serviço de saneamento básico satisfatório, ruas limpas e um policiamento digno e eficiente.
O índice de criminalidade baixou em 95%, diz o motorista, com ar jovial e despreocupado. […] A pobreza, ali, apresentava-se numa embalagem simples e digna, bem diferente da miséria com a qual havia sido obrigado a conviver desde o explosivo processo de inchamento verificado em Salvador, a partir dos anos 60 do século passado”
Eis, então, o grande “truque” do conto: a cidade narrada não coincide com a Salvador contemporânea, mas com uma projeção utópica situada num ainda futuro, mais especificamente, no ano de 2018 – ou, pelo menos, em um futuro em relação à data de escrita do texto. O fato de estarmos no início de 2021, quando a cidade ainda não realizou, e está longe de realizar, a imagem projetada pelo conto, potencializa a crítica elaborada por Carlos Ribeiro.
A estrutura temporal de “A cidade revisitada” dá liberdade ao narrador para estabelecer uma dupla representação da capital baiana: por um lado, a visualização imediata de uma utopia de cidade, com a qual quem lê pode se identificar, dada a possibilidade algo crível daquela realidade ser desejada por todxs; por outro, e por contraste, a reverberação intencional dos problemas da Salvador real, com a qual nós igualmente nos identificamos, posto que nela estamos situadxs.
A simulação que o narrador opera do ato de subtrair a si próprio da narração, promovendo a identificação entre si e quem lê, revigora a denúncia a respeito da cidade não representada, senão enviezadamente. Isto porque a leitora e o leitor são levadxs a reconhecer a inexatidão da cidade em que vivem em face daquela em que gostariam de viver. Ao fim e ao cabo, não é apenas o “homem de óculos e de roupas surradas” que revisita Salvador, mas também nós, agora de alguma forma partícipes da utopia do narrador e posicionadxs criticamente em relação à concretude do real.
Ante a cidade idealizada, a personagem enfim se reintegra afetivamente ao espaço citadino, agora recuperado e desprovido dos imensos entraves sociais e urbanísticos que restringiam a capacidade de sua beleza irradiar-se em todas as direções. E se é verdade que o texto que diz da personagem aponta igualmente para o narrador, também ele se reencontra com a cidade. E se é também correto o que eu disse a respeito da identificação entre o narrador e quem lê, também nós “revisitamos” as duas Cidade da Bahia – o espaço utópico confrontado com a cidade verdadeira. E, talvez, no descompasso entre o sonho e o real da capital baiana, possamos também ver outras cidades, igualmente díspares entre os dois planos.
É esta a mediação que o narrador de “A cidade revisitada” promove: a cidade do passado, acionada pela memória da personagem experiente versus a cidade do presente, na qual nós nos encontramosversus a cidade do futuro, observada com encanto pelo “homem de óculos e de roupas surradas”. O desfecho da narrativa aponta para a personagem temendo que tudo não passe de um simples sonho – na acepção de um processo mental que ocorre enquanto se dorme. No que concerne ao narrador e a nós, leitorxs, identificadxs e irmanadxs ao sentido potente das utopias, o desfecho é mesmo de esperança no sonho – apesar de tudo.
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Imagem: reprodução internet