31 DE MAIO DE 2020 - Meu nome é Johni

Meu nome é Johni
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31 DE MAIO DE 2020

31 DE MAIO DE 2020

Um amigo me ligou hoje pela manhã. Não enviou e-mail, mensagem de texto ou áudio: ligou. Pouco temos utilizado este recurso, que demanda presença em tempo real. Apenas para os casos de urgência. Era um urgência. Ele não estava bem. (certo: ninguém está bem neste maio de 2020. e eu não estou me referindo apenas às consequências atinentes ao processo de isolamento). Perguntou-me, ritmo pausado como quem precisa respirar entre uma palavra e outra, se eu havia visto o desfile das tochas acesas na madrugada de Brasília.

(certos dias são mais difíceis do que outros. certos dias parecem ser mais noite do que outros.)

Respondi que sim, havia visto. Ficamos em silêncio por algum tempo. Não sei se por dez segundos ou por uma hora. Era um silêncio estranho, desses que palavra alguma pode dizer. Sei apenas que, durante esta pausa tensa, eu sentia o peso da voz de Caetano nos versos de “Guantánamo”: é por demais forte/ simbolicamente/ para eu não me abalar.

(quando eu o ouvi cantar “guantánamo” pela primeira vez, espantou-me a contundência da canção, executada com austera gravidade. desde então, eu sempre a tenho citado quando algo se apresenta a mim como por demais forte/ simbolicamente/ para eu não me abalar. “sempre”, até por volta de 2017, não significava “quase diariamente”, mas “de forma esporádica”, posto que esporádicos eram os eventos que requisitavam em mim a sempre lembrança de guantánamo. no entanto, do início de 2018 até hoje, 31 de maio de 2020, “sempre” tem, de fato, traduzido a irredutível onipresença que o vocábulo guarda).

Nosso silêncio era um misto de tristeza, espanto, incredulidade e impotência. O impacto daquela cena havia nos colonizado, drenando nossas forças de vida – Suely Rolnik diria: cafetinando a nossa pulsão vital. Conversamos sobre a percepção de nós próprios como corpos despontecializados, algo vencidos por não encontrar restos por onde continuar – a palavra, que é recurso meu e dele, parece resultar inútil.

(o que sobra, quando a palavra já não comunica, senão a triste constatação de que a lógica da guerra se apresenta como muito mais sedutora aos homens?)

A propósito da marcha contra o STF, aquela das tochas acesas, o ex-ministro da justiça, o senhor Sérgio Moro, até pouco tempo bastante condescendente à política e aos grupos bolsonaristas, comentou, em tom de troça: “tão loucos, mas, ainda bem, tão poucos”.

(já deveríamos ter aprendido, em algum momento de nossa história, a não menosprezar perigos histriônicos que se apresentam em uma quantidade reduzida de corpos – os assentimentos tácitos são bem mais numerosos, mesmo incalculáveis, uma vez que invisíveis)

Por favor: não é que uma questão de números. Uma reportagem que li calculou em menos de trinta os corpos presentes na manifestação do grupo autointitulado 300. Pelo ridículo, poderia ser cômico. Mas, temos visto: o ridículo pode chegar (e chega) à presidência.

(ênfase: já deveríamos ter aprendido, em algum momento de nossa história, a não menosprezar perigos histriônicos que se apresentam em uma quantidade reduzida de corpos – os assentimentos tácitos são bem mais numerosos, mesmo incalculáveis, uma vez que invisíveis)

Inevitável: ao ver aquela cena – máscaras, tochas, palavras de ordem – não pude não pensar em 2017, quando, tão sem chão quanto hoje, eu acompanhei as notícias do que ocorria em Charlottessville, nos Estados Unidos. Não se trata de comparar as pautas dos 30(0) do Brasil com a dos supremacistas brancos estadunidenses, embora haja pontos em comum, muito menos o grau de capilarização de tais absurdos em suas respectivas sociedades. Trata-se de uma associação direta e imediata entre duas cenas idênticas em um mesmo ponto: no que revelam de tragédia a respeito dos Estados Unidos, no que revelam de tragédia a respeito do Brasil. Como eu ia dizendo: não é uma questão de números. O desfile das tochas acesas assusta não por serem 30 pessoas mascaradas e vestidas de preto marchando contra a democracia. O desfile das tochas acesas assusta por essas 30 pessoas perceberem a si próprias como legitimadas socialmente a ponto de vestirem suas roupas pretas, colocarem suas máscaras, acenderem as suas tochas e marcharem – ícone este, uma marcha de tochas acesas, tão evocativa de encapuzados estadunidenses e de cenas da Alemanha nazista que é improvável não ter sido pensada como uma homenagem à KluKluxKlan, ou, a Joseph Goebbels, sujeito já reverenciado por um outro ex-ministro bolsonarista. O ministro da propaganda do regime nazista planejou, na noite de 30 de janeiro de 1933, um desfile de tochas acesas carregadas pelos membros da sturmabteilung, milícia paramilitar de sustentação do regime (qualquer semelhança talvez não seja mera coincidência), para celebrar o fato de Adolf Hitler, então primeiro-ministro democraticamente eleito, ter sido empossado como chanceler alemão. Novamente: não se trata de números, se 300 ou 30 ou 3, mas da tragédia de uma sociedade que autoriza estes 3 ou 30 ou 300 a acenderam as tochas, marcharem e gritarem palavras de ordem representativas do fim de uma já alquebrada democracia. E não: isto não tem absolutamente nada a ver com “liberdade de expressão”, fórmula evocada a torto e a direito para que sejamos permissivxs a discursos autoritários e violentos, de resto muito pouco preocupados – paradoxalmente, que ironia – com a liberdade de expressão.

(digressão: o brasil tem apresentado um curioso caso de patologia: uma espécie de transtorno dissociativo relacionado à ideia de liberdade. vejam só: certos grupos entendem que há uma censura de matiz esquerdista instaurada no país. estes mesmo grupos, os que entendem que há uma censura esquerdista operando no país, protestam livremente contra a (suposta) censura da qual dizem ser vítimas. estes grupos se dizem, então, defensores da liberdade de expressão (embora advoguem em prol da eliminação do pensamento de esquerda e da atuação política de movimentos sociais). estes grupos marcham, livremente, diga-se de passagem. estes mesmos grupos acendem suas tochas e gritam contra as instituições que sustentam a democracia. estes mesmo grupos pedem intervenção militar – e aqui não custa lembrar, pois há quem já o tenha esquecido, que “liberdade de expressão” é justamente o que não existe em um processo de intervenção militar. se isto não for uma patologia, um transtorno dissociativo, é desfaçatez: mau-caratismo. não está excluída a hipótese de ser ambas as coisas).

Estávamos ainda em silêncio, quando ele me disse: “o que mais me fode é esta sombra tão concreta e pesada de impotência, que faz eu me sentir assim, vencido”. Caetano, volume máximo.

(transcrição de um trecho do ensaio sobre lampejos em tempos de chumbo, ou, por uma comunidade de vaga-lumes, ou, o que pode a arte?: “às vezes, o poder da máquina repressora é demasiado. às vezes, o peso sobre as nossas costas é desumano. Às vezes […] tudo parece ser sem saída, tudo parece ser uma grande e triste derrota. às vezes, parece mesmo que não se trata de o inimigo continuar vencendo, mas de este ser um jogo em que somente ele pode vencer. às vezes, render-se ao fatalismo parece ser a atitude mais honesta possível – talvez, inevitável.no entanto, é mesmo em face destas possíveis frustrações que se torna necessário dar as mãos a georgesdidi-huberman, que ensina: ‘uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. assujeitou-se o mundo, assim, totalmente como o sonharam – o projetam, o programam e quem no-lo impor – nossos atuais “conselheiros pérfidos”? postulá-lo é, justamente, dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer crer. é ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos projetores. é agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. é não ver mais nada. é, portanto, não ver o espaço – seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável – das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo’”)

Finalmente, eu respondi: –sabe? há mesmo muito pouco que possamos fazer, corpos tão pequenos que somos e cujo único recurso (não quero escrever de guerra) vem a ser a palavra – e ela está em muito baixa cotação. mas, sem nunca aceder ao silêncio que nos querem impor, tratemos de sobreviver. enquanto corpos não alinhados à sucessão fantasmagórica de absurdos movimentarem vida, nenhuma vitória deles será completa.é mínimo, eu sei. mas as pequenuras guardam potências nada desprezíveis. Quis finalizar a conversa com o “poeminha do contra”, do Mário Quintana (eles passarão/ eu passarinho), mas não encontrei em mim mesmo o tom necessário para dar a estes versos a leveza adequada. Soaria falso, forçado. Lembrei de “a noite dissolve os homens”, do Drummond. A noite caiu, sim, tremenda. A noite é mortal, sim, completa e sem reticências. A noite dissolve os homens, sim – e, talvez, este seja o verso mais certeiro: tantos homens diluídos. A noite anoiteceu tudo, sim. Mas, meu amigo: – havemos de amanhecer!

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem: Internet/Correio 24 horas

02/06/2020 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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